Continuação da história de uma manhã cheia de histórias.
Um estudo inspirador de um conhecido investigador em torno dos efeitos dos contextos na compreensão e resolução de problemas, nomeadamente dos contextos "de autoridade" (não posso citar para não interferir mais tarde na recolha de dados, caso alguém a ser envolvido possa passar aqui) colocou uma semente na minha cabeça (será usado no mestrado mas, para já, ensaio apenas testes e verificações simples dos indicadores que podem ser recolhidos junto de alunos que não serão os visados).
Com o exemplo desse estudo, lá fiz uma pequena experiência matemática na aula de apoio: problema impossível e absurdo. Em cinco, dois dizem-me que é impossível, três fazem a conta. Ao entrevistá-los sobre as razões, vou chegando às mesmas conclusões do investigador. Eles confiam em mim, reconhecem uma autoridade, habituaram-se a que todos os problemas devem ter uma resposta não importa a falta de lógica do enunciado ou a falta dos dados relacionados com a questão. Recriam a sua própria lógica estruturada na falta de confiança em si, gerada pela confiança na autoridade representada pelo professor em quem confiam - se ele me pede para resolver este problema, tem de haver uma solução (mesmo alunos que começam por fazer um ar de quem acha a coisa estranha, ou comentam mas o que é que uma coisa tem a ver com a outra?, instigados a escrever algo (não lhes digo resolvam, digo escrevam o que entenderem) acabam a fazer contas com os dados passando da intuição inicial libertadora à sujeição À lógica do sistema. Um deles depois, explicando as razões, dizia: a professora pergunta porque sabe a idade da pessoa e deixou aqueles números para a gente fazer as contas com eles. Outro: a professora pôs lá aqueles números para nos ajudar a descobrir com eles a idade do Capitão mesmo que não tenha nada a ver com o assunto.Já os dois restantes foram firmes na convicção de que tinham razão e não era possível fazer o problema com queles dados. Menos confiança na autoridade, em mim? Não me parece... já desenvolveram, isso sim, maior confiança em si próprios, nos seus julgamentos e intuições lógicas no processo de resolução de problemas matemáticos. É aí que quero que cheguem todos.
Os cinco pediram para eu fazer o mesmo com a turma e lá combinámos ontem o segredo para o dia de hoje.
Assim foi.
Novamente o misterioso problema (não posso colocar aqui o enunciado para não comprometer a aplicação posterior). E os resultados foram estes: no total da turma-26 (incluídos os alunos do apoio) 14 fazem contas sem sentido e oferecem uma resposta (alguns fazem o esperado: ensaiam uma conta e como o resultado lhes parece absurdo face à questão, experimentam outras contas até dar algo plausível), 6 deixam a folha em branco, 6 explicam por que consideram impossível a resolução do problema:
não dá para saber a solução porque não temos dados para isso,
não dá para resolver o problema por falta de dados,
com o texto não se consegue descobrir a solução e acho que não é possível assim resolver o problema,
não se pode fazer,
o problema é impossível de fazer.
Depois de recolher as folhas, e já muitos começando a desconfiar das suas respostas revendo a sua primeira intuição, digo a rir: pronto, só alguns de vocês é que vão ser contratados para trabalhar na Microsoft! (Alguém me disse que faziam algo semelhante no recrutamento de pessoal.) Explodem de imediato da contenção e aflição por que passaram e exclamam quase em uníssono: oh professora! Era uma rasteira do primeiro de Abril! Não dava para fazer o problema, pois não?
Vamos a contas. Realmente nem se sairam mal. No estudo, a percentagem de quem faz contas é cerca de 78%... aqui os meus meninos conseguem um honroso 54%. Depois os restantes distribuem-se igualmente pela não resposta ou pela resposta assumida de que é impossível.
Sem interpretações apressadas (porque não comparadas com diferentes turmas, isto tudo de pouco vale) gostaria de acreditar que a actividade permanente de resolução de problemas, de avaliação da razoabilidade de resultados, de um trabalho continuado desde o 5º ano sobre enunciados - análise dos dados necessários/desnecessários, ainda as actividades de programação com o scratch - tão importantes para desenvolver a lógica no pensamento (ainda que nesta turma, que não é a de estudo, decorra de forma menos permanente e mais informal) podem ir contribuindo para o aumento da confiança e auto-estima do aluno, no processo de resolução de problemas, até ao ponto em que a autoridade reconhecida do professor já não interfere com o discernimento nem com a compreensão de enunciados/situações, sejam eles quais forem.
O mais bonito?
A conversa que se seguiu... e que intencionalmente faço no caminho para o final do 6º ano...
Eles explicaram as suas razões para resolver o problema eu falei de como agradecia o carinho deles e a confiança em mim e, com jeitinho, ao mesmo tempo, procurei ajudar a perceber que não precisavam de a perder, ao ganhar confiança em si próprios. Que a vida lhes ensinará que, aos poucos, é preciso acreditar em nós, sem deixar de acreditar nos outros. Que crescer é aprender também a usar a lógica para fazer os nossos próprios juízos e depois agir confiando neles, como já alguns faziam (sem deixarem de confiar em mim, pelo contrário).
Que era um problema de "mentirinha" sim, o dia era apropriado... mas feito com carinho para que pudessemos juntos retirar dele uma lição de vida:
confiar em mim não significa sempre deixar de confiar no outro...
Oh, professora, ainda dá tempo... vamos fazer outro?
E aí apresentei um problema que, ontem, uma aluna do 5º ano me colocou a mim, sua professora, mal se sentou na aula de Matemática, vinda das férias - professora, adivinhe lá este: se eu tenho de comer três bolos, mas tenho de esperar sempre uma hora entre cada um que como, quantas horas levo para os comer aos três?
Felizmente para mim a mente ainda está ágil e vi imediatamente a solução (confesso que pensei nuns pastéis de Belém, porque modelar é um bom caminho... e se for só com a mente nem engorda...) e não passei vergonha nenhuma. Respondi correctamente.
No sexto ano o problema ainda deu que pensar. A discussão foi rica e acabámos a desenhar bolos no quadro. Foi já depois do toque que saímos, que o entusiasmo tem destas coisas e puxar pela mente pode ser apetitoso.
Julgam que deixo aqui a solução?
Nem pensem! Toca lá a ginasticar os neurónios!
ADENDA: na aula do quinto ano, matemática, continuámos o trabalho de ontem do referencial cartesiano... foi especial. Pela primeira vez o meu menino diferente iniciou de imediato o trabalho pré-pronto no caderno e eu fui ter com ele e mimá-lo... recebendo em resposta: professora, dá-me o hiphop da bicharada (havia visto as fotocópias na minha mão). Claro que dou! Ficou enlevado olhando, mas pedi: depois, depois M. agora vais acabar o exercício, sim? Sim. Acabou. E depois ouvi-o cantar baixinho com a folha à frente.
Já o outro menino, depois de cinco minutos em recusa para retirar o estojo, para levantar a cabeça deitada ostensivamente na mesa, perante a minha insistência firme com timbre de zanga e impaciência, finalmente decidiu preparar o material e acabou no quadro comigo a fazer exercícios de marcação de pontos no referencial enquanto eu ia conversando com ele, aproveitando para, mais uma vez, tentar ganhá-lo com carinho para esta turma para onde veio transferido, no final do período anterior, por razões disciplinares e ameaça de abandono... Não tem sido fácil (que a sua história não é mesmo nada simples), mas durante 20 anos este foi o meu público na escola de Setúbal, antes desta, e a estratégia do pobrezito nunca surtiu bom efeito. Tenho o maior carinho e respeito por situações complicadas, mas a pena atropela a eficácia da acção, inferioriza aquele a quem a dirigimos, não o dignifica enquanto ser humano... sou rígida, exigente, carinhosa, zango-me agora, depois estendo a mão, faço de conta que nada sei e tento que se sinta igual entre iguais. A turma é carinhosa, acolhedora e tem ajudado muito no processo de integração.
Os restantes felizes: oh professora agora é que eu percebi bem. Posso ir ao quadro? Posso eu? E eu posso? Podem sim... ora vamos lá!
Na próxima aula serão eles a corrigir os erros do primeiro exercício de ontem... queriam hoje, mas o tempo acabou depressa.
Nas Ciências de 6º (ai a minha cabeça já perdida com esta misturada toda!) programámos em conjunto as actividades até ao final do ano. Trabalhos em grupo sobre temas importantes, micróbios, higiene e problemas sociais, poluição..., formas de trabalhar, possíveis produtos - pistas, como ligar tudo isto à Área de Projecto, cuidados a ter, critérios de avaliação e sei lá mais o quê. As ideias a brotar. São criativos estes meus meninos...Toca e nem damos por nada.
Tropas moralizadas neste arranque de 3º período, que me cheira já a flores, que me cheira a Sol e a Primavera...
Conseguem ver o meu sorriso?
Recordação
Há 5 anos
2 comentários:
É sempre uma delícia ler estas descrições...
:) Beijinho
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