segunda-feira, novembro 10, 2008

Da felicidade ao sucesso (manifesto a favor da importância do sorriso?)

Uma das minhas melhores características enquanto professora é a capacidade de transpirar alegria por todos os poros que tenho e pelos que invento.
Muita dessa alegria tem as suas fundações numa vida que sempre procurei fosse plena de experiências, a ponto de ter sido muito difícil escolher um curso (embora aos 8/9 anos já insistisse em ser professora da mana mais pequenina, fosse directora de jornais caseiros dos manos, encenadora de peças de teatro que se apresentavam aos pais, mantivesse um caderninho de poesia, outro com desenhos, gostasse de cantar e de bicharocos, de investigar e de aprender sempre mais...).
Estava desenhado ali um futuro e eu não sabia.
Depressa percebi que queria ser professora e continuar a fazer tudo o mais que pudesse partilhar com os alunos. Chorei na noite em que decidi. Já estava na Universidade, prestes a chegar ao momento em que teria de optar pelo científico, ou pelo educacional. Porque sempre fui muito bicho do mato, e acreditei que seria possível trabalhar sem ter pessoas à minha volta, porque me assustei com uma decisão que me obrigaria a estar com muita gente, porque tenho um espírito meio solitário e adoro estar só perdida com os meus brinquedos. Venci o medo porque queria muito. Queria mesmo muito. Queria tanto, que obriguei a minha Faculdade a abrir estágio no 2º Ciclo, quando a vocação do curso educacional era para o 3ºC e Secundário. Continuo a achar estas idades mágicas e não as trocaria por nenhumas outras.

Foi sempre possível misturar tudo. E quanto mais eu conseguia misturar, mais especiais se tornavam as aulas. Um poema no bolso. Uma canção sobre os números. Criação de borboletas para contagiar os alunos (o meu kiko apanhou o vício e cresceu tanto...), sempre dois livros na mão (um para estudar, outro para sonhar), desde o advento da 'net um desejo de perceber por que razão certos países conseguiam mais do que nós... trabalhei incansavelmente os materiais do Ontário, li, devorei tudo o que encontrei (e é imenso), cada dia que passava melhor professora por conta desses tempos de estudo. Cantei, escrevi poesia. Amava cada dia como se fosse o primeiro. Esse espanto infantil que sempre me acompanhou, mesmo nas horas difíceis numa escola complexa de periferia. Construí a minha própria formação em contexto, nunca fui "fazer créditos" algures. Eu e mais uns colegas definimos necessidades, construímos acções (acreditadas) e desenvolvemos trabalho ímpar lá para os lados da Luísa Todi onde os meninos precisavam tanto desse nosso engenho e alegria. A minha progressão nunca foi automática. A minha consciência e a da maioria dos professores nunca o permitiu. Pouco me importa que alguns não o merecessem. Existem em todas as profissões. E não tomo a parte pelo todo: confio nos profissionais de qualquer área e não me ocorreria generalizar castigos para corrigir meia dúzia. É que eu não sou a Maria das competições, sou a Maria das partilhas, sempre me sentei com toda a gente que pedisse e ofereci o que sabia, reuni frequentemente por gosto com grupos de trabalho, criei projectos úteis, ajudei a desenvolver projectos que trouxeram muito dinheiro à escola (depois de avaliados nos concursos - lembram-se do Nónio? Conseguimos 9000 contos de equipamento com o nosso projecto - um dos três melhores do país), ajudei sempre os meus grupos e departamentos a caminhar mais depressa com o que aprendia (no tempo que tinha para o fazer e agora já não tenho - esta ideia de que passar todo o tempo na escola, em tarefas sem sentido, ajuda a melhorar a educação e a trazer mais sucesso do "verdadeiro", é falsa), aceitei apresentar o que faço em encontros, criei espaços na internet para chegar a mais pessoas nesse desejo de partilha de materiais, ideias e recursos (cada vez menos tempo para o fazer). Estou envolvida num projecto de que me orgulho (envolve o MIT) mas do qual não pude ainda falar por necessitar de algum sigilo até ao lançamento. Precisava de mais tempo para ele e não o vou ter. Posso dizer-vos, por exemplo, que acabei de receber uma mensagem de um dos responsáveis pela equipa Scratch do MIT pedindo ajuda para lhe fazer chegar projectos em português (alunos meus), pois o MIT vai estar no Brasil uma semana em actividades de formação e divulgação.

Os pais dos meus meninos são clientes reincidentes, procurando que os filhos mais novos sigam as pisadas dos que me passaram pelas mãos. Os meus colegas respeitam-me e muitas colegas mães fazem questão em mimar-me com o desejo de me entregar os filhotes. Foi um longo caminho, mas todos sabem quem sou, o que faço. Avaliação? A minha vida é um livro aberto e hoje não me apetece estar aqui com falsas modéstias. É bom que quem aqui chegue e me não conheça perceba quem são as pessoas que acham tudo o que se está a fazer um absurdo. Nâo sou nem inexperiente nem incompetente, pelo contrário. Acredito mesmo ter servido bem melhor o meu país, ter feito e fazer bem mais pelo meu país do que aqueles que neste momento o tutelam.
Ao ler com muito cuidado o ECD, tomei uma decisão. À conta dela desci lugares na graduação do grupo e nunca mais irei progredir. Pouco me interessa isso (como nunca me interessou competir por méritos na carreira). Tenho um bocadinho mais de tempo do que todos os que assim não decidiram e não me arrependo, bem pelo contrário. Os alunos agradecem. Detesto correntes, sempre detestei. Assisti a injustiças, como a que faz com que uma colega prestes a chegar à reforma com 94 pontos não pudesse ser titular e um colega com pouco mais de 60 pontos seja neste momento avaliador. Como ser cúmplice nesse processo e fingir que nada sabia? Estas são algumas das verdades que estão debaixo dos tapetes de muitas escolas. Para tapar este buraco inventaram nova oportunidade para ela conseguir aceder... remendos atrás de remendos para concertar o inconcertável. Já não será avaliadora este ano. Era assim que se pretendia separar o trigo do joio? Colocar os melhores à frente? A maior fraude a que já assisti. Antes a progressão automática. Se o processo continuar, lá mais para a frente explicarei aqui porquê com os documentos na mão.

Só sei que, apesar da minha decisão, mesmo assim neste momento não tenho o tempo de que preciso para ser a melhor professora do mundo para os meus meninos. E eu não gosto de me contentar com pouco.

Já nada canto e nunca mais consegui inventar canção que fosse, tenho um livro parado em mãos a precisar de atenção, já em fase de ilustração (poesia... português e inglês - a parte que falta, um desafio... a pensar nos meninos), raramente escrevo um poema, as guitarras murcham na parede, nunca mais pintei uma aguarela, nunca mais li um romance, estudo pela calada da noite e fins-de-semana adentro porque me tiraram as horas que mo permitiriam fazer, nunca mais criei borboletas, sorrio menos (embora faça um tremendo esforço para que os alunos não percebam o cansaço, nem sempre consigo... nestas coisas da alegria, sou genuína e as crianças bebem-nos a verdade nos olhos). Pedem-me que apareça nas escolas para falar com os meninos sobre o prazer de ler... pouco consigo agora e é com tristeza que adio, adio... Cada vez sou menos eu e mais uma coisa qualquer que não reconheço. Não reconheço a irritação, a revolta, uma tristeza funda que às vezes me sobe ao peito, como agora ao dizer dessa tristeza, uma lágrima fácil, uma impaciência mais persistente.

Eu sei que isto não interessa nada a quase ninguém.
Mas sinto-me trair o que há de essencial em mim. Se eu já quase não consigo ser eu, daqui a algum tempo como conseguirei ser alguma coisa para aqueles a quem tenho devolvido toda a alegria que bebo (bebia) à minha volta?

Estou a viver das poupanças de uma vida. Diz-me o extracto da conta que o saldo desce perigosamente. Vem-me um desejo frequente de deixar tudo, de voltar à música, à poesia (com tempo para estar com meninos de muitas escolas e avançar com outro tipo de projectos - eles sempre no centro), de mudar de vida e fazer pelo menos alguma coisa bem feita com princípio, meio e fim. Estabelecer prioridades e entregar-me a menos coisas ao mesmo tempo (eliminando da equação os disparates), para poder continuar a dar o meu melhor contributo naquelas que eleger como essenciais. Assim como está não vai poder estar muito mais tempo.


Foi assim uma saudade que me deu de mim. Dos meus sorrisos sempre que respirava, vivia e falava das coisas da educação.
Perdoem o comprimento das deambulações.

Os manifestos são assim um grito da alma. Começam sem se saber quando acabam.

É que nem dei pelo CD de homenagem à Ella... e isso diz tudo da minha desatenção à vida e aos prazeres dela.
Logo que consiga, vou buscá-lo.

A felicidade é um bem de consumo de primeira necessidade. Não devia pagar imposto nem ser trucidada.
O sucesso é a outra ponta do laço dela.

Sem ela ele não se cumpre.

Estarei, estaremos todos (tantos) errados?
O que sinto é ilusão? Não é verdadeiro?
(Internem-me.)

15 comentários:

armanda disse...

Não nos conhecemos pessoalmente, mas tenho a certeza que é a professora que eu gostaria que os meus filhos tivessem e faz parte do grupo de colegas que me permitem manter orgulho na classe a que pertenço.
Espero que já te sintas fisicamente melhor.
Vou fazer os possíveis por ir de novo a Lisboa no dia 15, mas só lá para o fim da semana é que terei a certeza. São muitos quilómetros e ainda estou a corrigir a 1ª rodada de testes e a 2ª rodada começa já daqui a 15 dias. Se for, vou tentar descobrir os "meus professores preferidos".
Um abraço,
Armanda

Teresa Martinho Marques disse...

Oh Armanda... obrigada pelo carinho. Vou recuperando, ams desta vez está lento. A partir de hoje tem de ser já pelo pé na vida... esperando que pelo menos não volte atrás depois destes dois dias de absoluto recolhimento.
Se vieres diz... combinamos ali ao centro do Marquês um encontro de amigos virtuais. Era bom conseguirmos abraçar-nos.
Beijinho

Anónimo disse...

Olá Teresa

Tive oportunidade de te conhecer há cerca de 1 ano e pouco quando mostraste total disponibilidade para vires à Escola de S. Gonçalo. A tua alegria e simpatia cativaram--me, bem como aos meninos a quem mostraste a tua "EXCELÊNCIA" como pessoa e educadora.Tal como tu, estou "aqui parada",(não preciso de qualquer avaliação para progredir) mas tenho lutado pelo respeito que merecemos e por uma avaliação justa para todos... Estive pela 2ª vez numa manifestação( a 1ª foi a 8/03) e penso estar novamente na do dia 15.Desejo-te rápidas melhoras.
Teresa Martins

Teresa Martinho Marques disse...

Oh Teresa... foi tão bonmito. Vocês mimaram-me tanto! Vai ser bom rever-te e encontrar caras que conheço daqui mas que é como se conhecesse desde sempre. Para mim será a segunda manifestação (falhei esta com pena) porque, tal como tu, mesmo sem precisar de avaliação para progredir, acho que temos de lutar pelo rigor e pela dignidade da profissão. Abraço grande e até 15!

Cerejinha disse...

Teresa, coragem!
Pouco posso dizer, é só para saberes que há quem te leia atentamente, quem te admire e esteja contigo. O desencanto de hoje não pode durar para sempre. E o trabalho acrescido de um mestrado não é brinquedo.
Desabafar também é humano e faz os outros verem-nos como pessoas de carne e osso que todos somos.
ânimo e beijinhos :)

Anónimo disse...

Olá Teresa!
Apenas te "conheço" pelas belas palavras do teu Blog. Sou prof no Porto e gostaria muito de te ter como colega, na minha escola.
As melhoras e obrigada pelos desabafos que sinto como "meus".
Bj Sami

Teresa Martinho Marques disse...

A escrita faz mais sentido quando sabemos que do outro lado do fio alguém escuta. Gente de carne e osso (mais osso que carne :)...
Ambiciono muito da vida... por isso às vezes se torne difícil olhar em redor. Mas encontrarei sempre um caminho porque estou viva e assim quero continuar. Obrigada pelas palavras e pelo carinho! Beijinho.

Amélia disse...

E eu escuto-te e gosto de te ler.Vamos lá, tocando em frente, como na canção de Almir Sater, cantada, entre outros, pela Bethânia.Um abraço, amiga!

José Paulo Santos disse...

Sorri... Ri... Canta... Celebra a vida, sempre! Sê maior! Mostra a tua força, na réstia da tua fraqueza... Luta pelo que acreditas, por mais que doa! EU ESTOU AQUI contigo! Estou a sentir e a viver o que descreves e sei que acordaremos do pesadelo...
Não duvido que já fizeste bem mais que por este país e pela Educação do que os... nem o que lhes chame... do ME.
Lança a tua fúria na escrita, se puderes... e nós faremos a catarse! ;-)

O beijo de sempre, com muita admiração e consideração.

Teresa Martinho Marques disse...

Eu sei que vocês me escutam... daí vem parte da força (que não acabou :). A outra vem dos meninos... Precisava de parar um bocadinho apenas para não estar sempre a queixar-me, porque me custa só ter coisas tristes para dizer. Ando a recolher histórias bonitas e depois de amanhã partilho-as com ternura e doçura... Porque se pode lutar falando do bom e de como nos querem impedir de o fazer.
Só posso agradecer a vossa força e o vosso carinho. Sempre! Abraço grande grande!

Maria Lisboa disse...

Porque te (nos) lemos, porque te (nos) sentes(imos) esvaída(os) de ti (nós) própria(os) enquanto pessoa(s), enquanto profissional(ais), porque nos querem robots produtores de máquinas e de "robotsinhos" standartizados e não seres humanos formadores de seres humanos, sentimo-nos desgastados, atingidos no mais fundo e mais bonito de nós próprios, no que de melhor tínhamos para dar. E é isto que provoca a nossa indignação, a nossa exaustão, a facilidade com as doenças nos atingem.
Não nos percebem. Pensam que estamos cansados porque nos deram mais trabalho. Não percebem que até trabalhávamos mais... mas esse mais, era trabalho com gosto, era trabalho com alegria, era para e pelos nossos alunos (agora até isso querem medir…). Não era trabalho sem finalidade, trabalho punitivo (sob todos os prismas por onde se olhe), trabalho para o dossier, trabalho que não para os alunos.

Não te animei muito… 
Não sendo consolo, apenas te disse que me interessa, que nos interessa, que estamos a trair-nos enquanto pessoas, enquanto profissionais, que estamos a esgotar o capital de esperança, de alegria, de disponibilidade que fomos construindo/amealhando.
Não sendo consolo, um “smog” de uma tristeza envenenada e asfixiante, envolve-nos a todos, impedindo-nos se sermos nós próprios

Teresa Martinho Marques disse...

"Não nos percebem. Pensam que estamos cansados porque nos deram mais trabalho. Não percebem que até trabalhávamos mais... mas esse mais, era trabalho com gosto, era trabalho com alegria, era para e pelos nossos alunos (agora até isso querem medir…). Não era trabalho sem finalidade, trabalho punitivo (sob todos os prismas por onde se olhe), trabalho para o dossier, trabalho que não para os alunos."
Animaste sim, Maria Minha Terra Natal :). As tuas palavras são sempre sábias... é isso mesmo. O que me dói não é o muito trabalho... bolas! Sempre trabalhei tudo o que podia e imenso, com imensa alegria e prazer (era "gozada" por essa energia e alegria e alcunhada de miss speed)! O que me (nos) dói é o trabalho sem tino que nos rouba a energia para a única coisa importante nas escolas - as crianças... Coisa tão simples e aparentemente tão difícil de perceber para quem... não nos entende nem sonha sequer o que é uma escola ou a educação...
Estranhos tempos...
Beijinho grande

tsiwari disse...

dois livros - um para sonhar.

imagem linda...e partilho contigo esse vício - o dos livros, o do sonho.


;)***

tsiwari disse...

OOOOps!

esqueci de te contar : ameiiii este vídeo!

;)*

Teresa Martinho Marques disse...

:)
Especial, não é? Calculei que irias gostar muito...
Vícios... :)