segunda-feira, novembro 24, 2008

Eles não sabem que o sonho...

Quando era miúda, lá na nossa casa, todos os dias eram dias de cultura científica. E em muitos deles celebrava-se António Gedeão (o primeiro poeta que li) e Rómulo de Carvalho, o cientista que lhe dava alma e corpo. Dia Nacional da Cultura Científica, na data de nascimento do cientista-poeta, é algo de muito natural e saboroso aqui por estes lados e traz à memória muita coisa doce (a história continuou porque optei pelo caminho da Ciência e porque o Cara-metade é também investigador científico).

É que o meu
Pai Eduardo é Físico (investigador) e também foi professor na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa (curiosamente, o meu Padrinho Jaime também) e na nossa casa havia sempre uma experiência para fazer... quer fosse inspirada na publicação "Física para o povo" (agora reeditada com o título - A Física no dia-a-dia , já na minha posse, claro), quer pelas coisas e acontecimentos que nos rodeavam, ou por causa das perguntas que lhe fazíamos.

Começam assim a perceber as consequências da cultura literário-científica em que fui imersa desde muito pequenina, o que me causou fortes dificuldades na escolha de um caminho, acabando na produção de alguém que, embora com formação em Ciência - Geologia, nunca conseguiu distanciar-se da poesia, da escrita, da música, da pintura, do ensino e do humanismo. Tive muitos bons exemplos...

E como se se celebrava lá por casa a cultura científica?

Para além das nossas perguntas...

que a Mãe com doçura e a brincar pedia que não fossem feitas à hora do almoço, porque o Pai para responder transformava a mesa toda numa actividade experimental... e se ele já comia devagar mais devagarinho comia depois com a brincadeira... e a Mãe coitada não se conseguia nunca mais despachar nas arrumações da cozinha... e era uma risota... com garfos espetados em rolha atravessada por agulha apoiada em cápsula de garrafa, que girava, girava porque o reduzido atrito lhe permitia um carrocel quase interminável...

... havia a actividade científica semanal que culminava com a questão ao fim-de-semana. Explico dando um exemplo:
Durante uma semana o Pai criava variadas situações (ao fim do dia, quando chegava do trabalho no ITN) em que, por exemplo, acabávamos por perceber que o calor dilatava os corpos. Lembro uma delas em que dois pregos espetados numa madeira estavam à distância exacta do comprimento do diâmetro de uma moeda de 5 tostões... aquecia-se a moeda no fogão (com pinça apropriada) e a moeda já não cabia naquele espaço...
No fim-de-semana era feita a actividade final que vinha com uma pergunta... quem respondesse ganhava vinte e cinco tostões! (O que era um acréscimo imenso à semanada).
Por norma eu e o meu mano ficávamos com o dinheiro. A Lena não gostava lá muito de Matemática nem de Ciências. A Isabelinha era muito pequenina. Eu era a mais velha das manas e o Paulo o mais velho dos quatro, estávamos em vantagem (eu e o Paulo frequentávamos já o 2º ciclo nesta história). O Pai começou a experiência: colocou água num tubo de ensaio e marcou com uma caneta de acetato o nível (olhando paralelamente e assinalando a base da superfície curva da água). Em seguida disse que ia aquecer o tubo e perguntou o que achávamos que ia acontecer. Todos dissemos que a água ia subir acima da linha marcada com a caneta de acetato, porque ia dilatar.
Qual não foi o nosso espanto quando percebemos que ao ser aquecido o tubo, primeiro a superfície da água descia abaixo do risco e só depois começava a subir. Mistério...
Chegou então a pergunta da semana: por que razão terá acontecido isto que observaram? Eu e o meu mano calados.
Ouviu-se a voz da Lena: eu cá acho que primeiro dilatou o tubo e a água desceu e só depois é que dilatou a água...
Dessa vez, eu e o meu mano perdemos os vinte e cinco tostões e nunca mais esqueci a história...


Experiência

Doce de abóbora gila
feito pela Avó
colou o Pai cientista
no vidro daquela janela.
Uma ideia esquisita?
As formigas gostaram dela
e vieram de pantufas
de pijama com pintinhas
sem gritos nem empurrões
em fila organizada
provar que nenhuma migalha
fica desaproveitada.

Não sei se era bem esta
a conclusão a tirar
porque, afinal de contas,
podiam ter vindo apenas
para a janela limpar!


--------------------------------------------

Pela internet... algumas pistas:

DIA NACIONAL DA CULTURA CIENTÍFICA
Abre o Centro Ciência Viva Rómulo de Carvalho
(de Rerum Natura)
.
[antonio_gedeao_retrato_1.jpg]



Amostra sem valor (já uma vez trouxe estas palavras para a teia)

Eu sei que o meu desespero não interessa a ninguém.
Cada um tem o seu, pessoal e intransmissível:
com ele se entretém
e se julga intangível.

Eu sei que a Humanidade é mais gente do que eu,
sei que o Mundo é maior do que o bairro onde habito,
que o respirar de um só, mesmo que seja o meu,
não pesa num total que tende para infinito.

Eu sei que as dimensões impiedosas da Vida
ignoram todo o homem, dissolvem-no, e, contudo,
nesta insignificância, gratuita e desvalida,
Universo sou eu, com nebulosas e tudo.


António Gedeão

Um documentário biográfico excelente do Canal 2, com a presença e voz de Rómulo de Carvalho

8 comentários:

Anónimo disse...

Querida Teresa:
Há coincidências ou será que nós as provocamos?
Na quinta-feira passada, a propósito de um texto da aula de LP, pedi aos meus alunos que procurassem um determinado poema de António Gedeão e, hoje, muitos deles o traziam!!!
Um abraço,
Emília.

Teresa Martinho Marques disse...

:)
Querida Emília
Não pode ser coincidência...
E estás sempre no meu pensamento. Desculpa esta ausência forçada... A vida está "complexa" e enquanto não conseguir acabar a tese estou a modos que enclausurada :)
Beijinho

Teresa Pombo Pereira disse...

Ai Teresinha. Que história tão deliciosa :-) só podia ser tua. Beijos.

Teresa Martinho Marques disse...

Tive a sorte de viver muitas histórias destas... :)

Beijinhos mil!!!!

EMD disse...

Hoje vou ganhar um minuto para te dizer: lindo e emocionante.

henrique santos disse...

Depois daquele deprimente Prós&Prós so o tempo de teia para lavar os olhos e a alma.
obrigado 3za

Marina disse...

Ai 3za, que engraçado!
Eu não conheço o "Pai Eduardo" ao vivo, mas tambem eu andei pelo ITN nestes ultimos 3 anos e li muita coisa que ele escreveu! =)
Coincidencias de um mundo pequeno!

Beijinhos e até breve

Teresa Martinho Marques disse...

Obrigada eu pela vossa paciência em acompanhar tantas tantas palavras :) e pelas palavras que me deixam em troca... Mimos!
(E Marina, mundo mesmo pequenino!)
Abraço