segunda-feira, outubro 01, 2007

Da fantasia à abstracção...

Estão a ver esta pirâmide que tenho na mão? Sim? Mesmo mesmo?
(Seguro-a por uma ponta, elevo-a pendurada e informo que se trata de uma pirâmide quadrangular.)
De certeza que estão a ver?
Várias vezes o coro de sins com mil sorrisos de cumplicidade.
Já sabem que só nós é que conseguimos vê-la... qualquer pessoa que aqui entrasse agora não veria nada pendurado na minha mão...
Pois é professora, só nós é que temos o poder.
Sim. Só nós.

Agora, para eu ter a certeza de que estão a ver tudo bem visto, preciso que me contem o número de vértices, arestas e faces. E, já sabem, tal como falámos ontem, usem a lógica, usem a razão. Essa coisa de contar com os dedinhos sem perceber a relação entre estes elementos e o sólido em causa, com frequência leva a erros. Sejam críticos, analisem a resposta, verifiquem se é possível...

Sim. Está bem.
Aqui vai... Quantos vértices tem esta pirâmide?

Olham para o vazio na minha mão (braço já cansado de elevar uma pirâmide invisível) e dedos no ar pedindo para responder.

Diz lá tu C.
São 5.
Hummm... anda cá explicar isso.

Levanta-se. Avança para mim. O dedinho aponta cada um dos invisíveis vértices e a voz explica que nem era preciso. Pois se a base é um quadrado, professora, são quatro em baixo e um em cima. Esse por onde a professora está a segurar nela. Sorriso enorme... (Segurar o quê? Todos conseguimos ver o que lá não está e ao fim de uns minutos já nem questionamos isso.)

Já me dói o braço. A pirâmide é pesada. (Mudo-a de mão, sacudo o braço cansado.)
Professora!
Sim?
Posso ser eu a pegar nela?
Podes. Toma lá. Mas eleva-a alto para todos a verem...

Entrego-a. Ele recebe-a. Eleva-a como lhe pedi. Ar sério.
A aula continua. Oh professora! O número de vértices e de faces nas pirâmides parece que é sempre igual! Ai sim? Por que será? E será que é para todas elas? Porquê?
Novos desafios, mais caminhos.
Agora são eles a propor aos colegas novos sólidos. Sustentando-os com a convicção de uma fantasia que torna tudo bem real nestas idades.

Claro que lhes explico com seriedade a importância da abstracção. De passar do modelo real, ao modelo na nossa mente. O que isso implica de conhecimento, de estudo, de relação entre tudo o que se vai aprendendo. Falamos da importância do uso da memória. Ferramenta fundamental para poder fazer crescer a compreensão do mundo, através dos fios que tudo vão ligando.
Sabemos navegar entre a fantasia, que também é coisa para levar muito a sério, e a importância de crescer na nossa percepção do mundo, que nem sempre terá os objectos do conhecimento à mão. A aula torna-se exigente. Aprendem a expressar argumentos, a explicar raciocínios e respostas.

E agora?
Agora basta atirar o sólido ao ar e ele volta lá para cima, para o céu dos sólidos.
Quando precisarem de um... basta estender a mão, pensar nele e... ele estará de volta!

Oh professora...
Sim?
Esta aula foi muito gira...


 

11 comentários:

João Paulo Proença disse...

Oh Teresa:

Já é a 2º Vez que me comoves em pouco tempo! A 1ª foi a história dos lanches, chocolates e alimentação.

De facto, nem todos nascem para professor e tenho pena que os "burocratas" com as malditas grelhas possam vir a dar cabo da beleza do ensino

bjs

João P.

Anónimo disse...

Delicioso :)
(Nunca na vida me lembrei de levantar o braço a fingir segurar um sólido... apetecia-me voltar a ter uma aula dos pequenotes... ;) )

Anónimo disse...

É sempre uma delicia passar por aqui... :D
Bj

Anónimo disse...

Vocês são uns queridos...
O que realmente acontece aqui... é que não há meio de eu crescer... :) e ainda bem! Sinto-me tão próxima das idades deles... É como se soubesse exactamente o que tem de acontecer em determinados momentos. E flui, sem que pense muito nisso... Vamos estabelecendo laços tão doces...
Obrigada pelo vosso carinho!

João Paulo Proença disse...

Teresa:

Esta deve ser das primeiras vezes em que discordo de ti:
"que realmente acontece aqui... é que não há meio de eu crescer... :) e ainda bem!"

Para que queres tu não crescer?
Crescer é perder a capacidade de imaginar?
Crescer tem que ser a capacidade de ser cada vez mais "plástico" e fazer-se possuidor de toda uma série de "competências" que lhe permitem dar a volta em qualquer circunstância de aula sabendo de antemão que se a aula até vier a correr mal a culpa não é de uma hipotética incapacidade de dar aulas ou de ser "hipotéticamente" mau professor (isso era no início de carreira com as inseguranças...)

Confesso que gosot da ternura dos 40 pois vejo-me possuidos de uma certa calma e de uma certa capacidade de dar a volta por cima em sala de aula e mais que tudo de admirar a beleza de uma janela e/ou de uma fachada e a cor amarela de uma folha particular que acabou de cair

bjs

João

Anónimo disse...

Percebo-te...
Utilizando a palavra crescer dessa forma, concordo contigo. No fundo esse é o verdadeiro "crescer".
Talvez eu me referisse a outro tipo de "crescimento" (que realmente nem crescimento é)... aquele que nos rouba dos olhos as perguntas sobre o mundo e a capacidade de nos espantarmos com ele...
POrtanto, tens razão. Desse ponto de vista é saboroso crescer e acho que tenho crescido muito... (Viva a ternura dos 40! :)

Teresa Lobato disse...

Miga, deixa-me contar-te uma história a propósito de pirâmides:
Eu estava no CRE com um aluno meu que era autista. Ele adorava construir sólidos com uns apetrechos de matemática que lá havia e que permitem a criação de múltiplos objectos. Às tantas constrói uma pirâmide e eu pergunto-lhe o nome do sólido. Ele acerta. Fingindo que espreitava para dentro da pirâmide, pergunto-lhe o que poderia estar lá dentro. Ele diz-me: um príncipe!
Continuámos a nossa conversa, a partir daquela afirmação tão segura do meu aluno. Ele tinha imaginado um castelo! Um castelo de sonho, como são os sonhos e os mundos imaginários, não só dos autistas, mas de todos aqueles que sabem sonhar.

Beijo

Anónimo disse...

:)

Setora disse...

Belíssima actividade.
Claro que assim funciona.
Um abraço

Nenúfar Cor-de-Rosa disse...

"Esta aula foi muito gira" é de facto a cereja no topo do bolo...e ter prazer no que se faz e transmitir esse prazer de forma tão clara, conseguindo colocar-lhe o tal brilho nos olhos é...E-S-P-E-T-A-C-U-L-A-R!!vou-te dar os parabéns não só pela aula linda e super didática, mas principalmente por a partilhares aqui neste teu espaço...colocando assim - o tal brilho - também nos nossos olhos!! Bjs

Teresa Martinho Marques disse...

Ohhhhhh Obrigada!
Muitos beijinhos.