segunda-feira, abril 17, 2006

O Sonho. O Jardim. O Jardineiro

Hoje na caixa do correio tinha uma mensagem de alguém que admiro (e que semeia palavras claras e fortes no Correio da Educação), com a divulgação de um livro de Rubem Alves a caminho (A Boa Nova dos Dias) e a partilha de uma palavra mágica para um reino encantado:

Multiplico essa partilha aqui como se multiplicam as plantas do jardim. Deixando sementes que levam até este homem especial que é Rubem Alves. Estava já previsto falar-vos dele, mas não por este caminho. Foi melhor assim: primeiro é preciso conhecer "a sua casa..." (Escolhi o jardim para vos envolver em fios de seda e levar até ele... por que teria sido?)

Em época de regresso aos dias com Escola pelo meio, sabe bem toda a doçura que este ser humano especial coloca à nossa disposição de forma generosa. E dar, dádiva, oferta... são a essência do ser educador. Que melhores palavras para recomeçar?


http://www.rubemalves.com.br/jardim.htm :
Depois de uma longa espera consegui, finalmente, plantar o meu jardim. Tive de esperar muito tempo porque jardins precisam de terra para existir. Mas a terra eu não tinha. De meu, eu só tinha o sonho. Sei que é nos sonhos que os jardins existem, antes de existirem do lado de fora. Um jardim é um sonho que virou realidade, revelação de nossa verdade interior escondida, a alma nua se oferecendo ao deleite dos outros, sem vergonha alguma... Mas os sonhos, sendo coisas belas, são coisas fracas. Sozinhos, eles nada podem fazer: pássaros sem asas... São como as canções, que nada são até que alguém as cante; como as sementes, dentro dos pacotinhos, à espera de alguém que as liberte e as plante na terra. Os sonhos viviam dentro de mim. Eram posse minha. Mas a terra não me pertencia.

O terreno ficava ao lado da minha casa, apertada, sem espaço, entre muros. Era baldio, cheio de lixo, mato, espinhos, garrafas quebradas, latas enferrujadas, lugar onde moravam assustadoras ratazanas que, vez por outra, nos visitavam. Quando o sonho apertava eu encostava a escada no muro e ficava espiando.
Eu não acreditava que meu sonho pudesse ser realizado. E até andei procurando uma outra casa para onde me mudar, pois constava que outros tinham planos diferentes para aquele terreno onde viviam os meus sonhos. E se o sonho dos outros se realizasse, eu ficaria como pássaro engaiolado, espremido entre dois muros, condenado à infelicidade.
Mas um dia o inesperado aconteceu. O terreno ficou meu. O meu sonho fez amor com a terra e o jardim nasceu.
Não chamei paisagista. Paisagistas são especialistas em jardins bonitos. Mas não era isto que eu queria. Queria um jardim que falasse. Pois você não sabe que os jardins falam? Quem diz isto é o Guimarães Rosa: "São muitos e milhões de jardins, e todos os jardins se falam. Os pássaros dos ventos do céu - constantes trazem recados. Você ainda não sabe. Sempre à beira do mais belo. Este é o Jardim da Evanira. Pode haver, no mesmo agora, outro, um grande jardim com meninas. Onde uma Meninazinha, banguelinha, brinca de se fazer Fada... Um dia você terá saudades... Vocês, então, saberão..." É preciso ter saudades para saber. Somente quem tem saudades entende os recados dos jardins. Não chamei um paisagista porque, por competente que fosse, ele não podia ouvir os recados que eu ouvia. As saudades dele não eram as saudades minhas. Até que ele poderia fazer um jardim mais bonito que o meu. Paisagistas são especialistas em estética: tomam as cores e as formas e constróem cenários com as plantas no espaço exterior. A natureza revela então a sua exuberância num desperdício que transborda em variações que não se esgotam nunca, em perfumes que penetram o corpo por canais invisíveis, em ruídos de fontes ou folhas... O jardim é um agrado no corpo. Nele a natureza se revela amante... E como é bom!
Mas não era bem isto que eu queria. Queria o jardim dos meus sonhos, aquele que existia dentro de mim como saudade. O que eu buscava não era a estética dos espaços de fora; era a poética dos espaços de dentro. Eu queria fazer ressuscitar o encanto de jardins passados, de felicidades perdidas, de alegrias já idas. Em busca do tempo perdido... Uma pessoa, comentando este meu jeito de ser, escreveu: "Coitado do Rubem! Ficou melancólico. Dele não mais se pode esperar coisa alguma..." Não entendeu. Pois melancolia é justamente o oposto: ficar chorando as alegrias perdidas, num luto permanente, sem a esperança de que elas possam ser de novo criadas. Aceitar como palavra final o veredicto da realidade, do terreno baldio, do deserto. Saudade é a dor que se sente quando se percebe a distância que existe entre o sonho e a realidade. Mais do que isto: é compreender que a felicidade só voltará quando a realidade for transformada pelo sonho, quando o sonho se transformar em realidade. Entendem agora por que um paisagista seria inútil? Para fazer o meu jardim ele teria que ser capaz de sonhar os meus sonhos... (...)



http://www.rubemalves.com.br/ojardineiro.htm :
Faz tempo ganhei um presente maravilhoso: por conta da Fundação Rockefeller passei um mês na “Villa Serbelloni“. A “Villa Serbelloni“ é um palácio, em tempos idos morada de príncipes e princesas. Dizem as – não sei se boas ou más - línguas que o presidente John Kennedy teve um encontro amoroso com Sophia Loren naquele lugar. Se teve, o lugar foi bem escolhido. Hoje ela está destinada a fins menos românticos: é um centro de estudos e conferências. Para se ganhar presente igual ao meu basta que se tenha um projeto acadêmico passível de ser realizado em um mês. Se for aprovado o candidato passa um mês na “Villa Serbelloni“...

Quando cheguei foi um deslumbramento! Lá embaixo, o lago de Como, azul, suas margens pontilhadas com pequenas vilas. Ao fundo, os Alpes cobertos de neve. Ao redor, bosques e jardins – dezessete quilômetros para se caminhar em meio à beleza. E a cada quarto de hora se ouviam os sinos, os mesmos sinos que eram tocados há séculos. A beleza era prenúncio de um mês de felicidade!

Mas, passados uns poucos dias, a tristeza bateu. A beleza dos bosques e jardins era a mesma mas não me dava alegria. Comecei a ter saudades do meu jardim, jardinzinho que podia ser atravessado com duas dúzias de passos. Os jardins do palácio eram lindos, lindíssimos, muito mais lindos do que o meu. Mas não eram o MEU jardim. Eu não os amava. O jardim que eu amava era aquele onde estavam as plantas que eu havia plantado.

Senti-me igual ao Pequeno Príncipe. No seu pequeno asteróide ele tinha um jardim com uma rosa só. E ele imaginava que sua rosa era única, não havia nenhuma igual em todo o universo. Agora, caído nesse mundo, longe da sua rosa, ele estava aflito. Sozinha, quem cuidaria dela? Havia o perigo de que o carneiro a comesse... Foi então que, andando pelo mundo, ele passou por um mercado de flores. E lá ele viu o que nunca imaginara ver: centenas, milhares de rosas, todas iguais à sua rosa, sendo vendidas aos maços. O seu primeiro sentimento foi de espanto. “-Então, minha rosa não é a única! Ela me mentiu quando me fez acreditar que não havia outra igual... “ Ao espanto seguiu-se a tristeza: rosas, centenas, milhares... Seu jardinzinho era ridiculamente pequeno... Levou tempo para que ele compreendesse que sua rosa lhe dissera a verdade. “– Não! Essas rosas não são iguais à minha rosa. Não são iguais porque a minha rosa é a rosa de quem eu cuidei! Tirei as lagartas de suas folhas – nem todas é verdade, por causa das borboletas - , eu a reguei e pus uma mordaça na boca do carneiro, para que ele não comesse as suas folhas...“

Os adultos têm dificuldade de entender. As crianças são mais inteligentes, elas têm a inteligência do coração. Quando morre um cachorrinho e a criança chora, os grandes se apressam em consolar: “- Não chore! Vamos comprar um outro cachorrinho igualzinho ao seu!“ Só a criança sabe que nenhum outro cachorrinho do mundo será igual ao seu cachorrinho que morreu...

Foi assim que me senti em meio aos jardins da “Villa Serbelloni“: eu queria voltar para casa para cuidar do meu jardinzinho! Aprendi então a primeira lição da jardinagem. Jardins bonitos há muitos. Mas só traz alegria o jardim que nascer dentro da gente. Vou repetir, porque é importante: só traz alegria o jardim que nascer dentro da gente. Plantar um jardim é como parir um filho. É preciso que o jardim se forme primeiro, como sonho. Li isso pela primeira vez nos escritos do místico Angelus Silesius: “Se você não tiver um jardim dentro de você, é certo que você nunca encontrará o Paraíso!“ Traduzindo: se o jardim não estiver dentro o jardim de fora não produzirá alegria.

Rickert tem um poeminha que diz assim: “Nossos dias são curtos mas com alegria os vemos passando se no seu lugar encontramos uma coisa mais preciosa crescendo: uma flor rara, exótica, alegria de um coração jardineiro... Uma criança que estamos ensinando. Um livrinho que estamos escrevendo.“ Se tivermos um coração jardineiro a passagem do tempo, a velhice chegando, a morte espreitando, deixam de ser uma experiência de dor. Plantar um jardim é uma liturgia para exorcizar a morte. Eu me alegro olhando para as árvores pequenas que estarão grandes depois que eu ficar encantado. (...)

Voltaremos a ti Rubem.

4 comentários:

matilde disse...

Obrigada 3za, pela partilha... E pelo ar de amor que se respira por aqui... Amor pelos Jardins, pelos animais... e pelas pessoas :)

Teresa Martinho Marques disse...

Obrigada eu pelas vossas visitas... Elas são as flores deste meu jardim a que chamei teia... Beijinhos

Herr Macintosh disse...

Li agora a tua entrada sobre o Rubem Alves (já tinha cá vindo e passado os olhos por cima mas só agora li com olhos de ler) e lembrei-me de uma coisa engraçada. Na Idade Média os jardins eram um espaço especial e mágico: na imaginação das pessoas representavam a conquista da Natureza pelo Homem, eram a ordem num mundo caótico e, muitas vezes, incompreensível que cercava e cerceava. Na literatura medieval os amores lícitos aconteciam no jardim, os ilícitos na floresta (Guinevere encontra-se com Lancelote na floresta).
Coisas de historiador.

Teresa Martinho Marques disse...

Obrigada pela lição de História... estamos sempre a aprender contigo. (E não é só História!)