Não sei por que razão me lembrei disto hoje...
Talvez por andar enredada em leituras que me têm feito pensar. Talvez porque sou propensa à inquietação, à insatisfação, talvez porque nos vejo um pouco sem rumo, zangados, e definindo objectos de luta pequenos, uns contra os outros, sem sintonia que se veja. Custa-me esta dispersão de esforços. Não somos completamente culpados quando nos tentam distrair com tudo o que são tarefas burocráticas, sem respeito pela necessidade de tempo no acto de criação de um professor... mas seremos se nos deixarmos ir nesta maré de afogamentos que nos suga a alma toda e cospe o caroço no fim.
Quero acreditar que há um caminho que podemos fazer. Mesmo que não seja fácil. Mesmo que, para isso, precisemos de abdicar um bocadinho de nós para nos colocar no lugar do outro.
Há um caminho, eu sei que há. Tem de haver.
O texto que se segue foi retirado de uma pequena publicação de que fui responsável, durante o funcionamento de uma oficina de formação (sobre desenvolvimento e avaliação de competências, em 2004). Chamei-lhe Sementes, porque era de semear e plantar pequenos possíveis que a nossa união era feita, Foi bom partilharmos uns com os outros sonhos, visões, diferenças, desejos. Tudo permanece tão actual...
O tempo não se recupera, eu sei. Mas sinto uma secreta saudade, admito, de gente disposta a lutar lado a lado por outras formas de olhar as coisas.
Não quero matar esta saudade... portanto, partilho-a e faço-a vossa.
Um pequeno rebento de esperança?
Passar da teoria à prática é um salto complexo, assustador.
São anos e anos de hábitos, uma vida inteira de coisas (aparentemente) no lugar, (aparentemente) certas, feitas de uma experiência pessoal que nos ajuda a manter o rumo, a acreditar que não é possível fazer diferente.
Depois as leituras, a partilha, a reflexão, o desequilíbrio, uma vontade secreta de mudar, de contornar as desculpas, de se entregar a novas aventuras. Sem rupturas, sem exageros. Aproveitando os velhos recursos, a energia de que ainda se dispõe, procurando na continuidade fazer diferente, fazer melhor, pensar sobre o que se faz, pôr em causa convicções antigas, construir crenças simples, novas, com a ajuda dos alunos.
Este é, sem dúvida, o maior desafio da formação: provocar desconforto, levar à acção, ajudar cada um a encontrar novos sentidos para a mudança de ofício.
Recordemos as palavras de um pedagogo brasileiro, Ruben Alves, publicadas no Público - 29 de Abril de 2001 - e chegadas à oficina num dos muitos momentos de partilha. Palavras que nos provocam, que definem um horizonte ainda muito longínquo, mas não nos podem deixar indiferentes:
Ruben Alves é docemente subversivo. O pedagogo brasileiro elogia uma escola de relações humanas e discursos amorosos. Sem currículos, programas, horários fixos e turmas. É a vida e a sua imprevisibilidade que ditam as palavras que desfazem o giz no quadro negro...
“ O corpo carrega duas caixas, ambas essenciais para a vida. De um lado é a caixa das ferramentas, onde estão todas as coisas úteis. (...) Nós não somos seres apenas de utilidades, também carregamos dentro de nós a caixa dos brinquedos. Esse baú guarda o que realmente importa para dar significado à vida humana. Todas as coisas que não podem ser acomodadas na caixa de ferramentas, nem na caixa dos brinquedos, são esquecidas. Porque o corpo é sábio.
(...) os currículos são construídos no pressuposto de que a gente tem de aprender todas as ferramentas possíveis. O que ocorre nas nossas escolas é que houve um momento em que se pensou que os saberes poderiam ser organizados abstractamente num programa e que esse programa poderia ser ensinado numa sequência lógica. Mas a vida não tem sequência lógica. Nós não podemos programar as experiências de vidas. Há, então, um descompasso entre os programas e a vida. (...)
Uma das coisas mais importantes da aprendizagem não é aprender a ferramenta, mas aprender a encontrar a ferramenta quando necessário. Não é possível carregar o tempo todo todas as ferramentas.
(...) acredito que, em qualquer escola, é preciso desaprender a ser professor. Existe a ideia de que o professor tem uma série de saberes e a de que vai transmiti–los. (...)
(...) a escola também deve ser uma forma de compartilhar a vida e, à medida que ela acontece, a gente vai estudando. E, nessa situação, o professor não é mais aquele que sabe de todas as coisas. Todos pesquisam e, frequentemente, os alunos descobrem coisas que os próprios professores nunca descobriram. (...)
A memória é como um escorredor de massa, retém aquilo que é vital e deixa passar o que não tem significado.”
Sei que nem tudo pode ser possível... Mas gosto da doçura deste jardineiro de sonhos...
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2 comentários:
E por tudo o que disseste, cada vez mais, as escolas devem proporcionar (na medida do possível) actividades que deixem cada um utilizar as "duas caixas"... Beijinhos e as melhoras do Clóvis
Concordo!
Obrigada pelos votos. É preciso sobretudo tempo e paciência para esperar pelo desfecho da situação que está longe de estar resolvida... pelo contrário...
Enfim.
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