Por Manuel António Pina no seu livro:
O Pequeno Livro de Desmatemática
(um livro que é, ele próprio, uma doce e divertida ponte entre a literatura e a matemática. Uso e abuso destas pontes nas aulas, sempre que possível! Lembram-se do Figuras Figuronas da Maria Alberta Menéres? Não? Qualquer dia falo-vos dele...)
A triste história do zero poeta
Numa certa conta havia
um zero dado à poesia
que tinha um sonho secreto:
fugir para o alfabeto.
Sonhava tornar-se um O
nem que fosse um dia só,
ou ainda menos: só
o tempo de dizer: “Oh!”
(Nos livros e nas selectas
o que mais o comovia
eram os “Ohs!” que os poetas
metiam nas poesias!)
Um “Oh!” lírico & profundo,
um só “Oh!” lhe bastaria
para ele dizer ao mundo
o que na alma lhe ia!
E o que na alma lhe ia!
Sonhos de glória, esperanças,
ânsias, melancolia,
recordações de criança:
além de um grande vazio
de tipo existencial
e de uma caixa que um tio
lhe pedira para guardar;
e ainda as chaves do carro
e uma máscara de entrudo...
Não tinha bolsos, coitado,
guardava na alma tudo!
A alma! Como queria
gritá-la num “Oh!” sincero!
Mas não passava de um zero
que, oh!, não se pronuncia...
Daí que andasse doente
de grave doença poética
e em estado permanente
de ansiedade alfabética
E se indignasse & etc.
contra o destino severo
que fizera dele um zero
com uma alma de letra!
Tanta ambição desmedida,
tanto sonho feito pó!
E aquele zero dava a vida
para poder dizer “Oh!”...
Manuel António Pina
Pequeno Livro de Desmatemática
Assírio e Alvim, 2001
É com este poema que muitas vezes me apresento aos alunos na primeira aula...
Acho que sou exactamente isto: um zero com alma de letra.
Para entender melhor a metáfora das gavetas (que não é minha), vão até:
O Canto do Vento
Outróòlhar
Recordação
Há 5 anos
1 comentário:
Este livro, o da Desmatemática, conheço, mas não o "Figuras Figuronas" da Maria Alberta Menéres - fico à espera que um dia caia aqui na tua teia.
Quanto ao Zero Poeta... se o virem perguntem-lhe a que é igual Oh-Oh. Pode ser que fique mais animado ;-)
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