quarta-feira, novembro 28, 2007

Do baú do Miguel para outra arca...

Ao recordar o que o Miguel tirou do baú das memórias e que descreve de forma soberba o actual estado da escola, não consegui deixar de pensar em algo que tenho dito vezes sem conta, de há alguns anos para cá, sempre que olho para os horários dos alunos (cada vez mais atropelados e cheios de dióxido de carbono, pelas razões conhecidas): se eu fosse miúda agora ia ser uma miúda infeliz e asfixiada na escola... admito até que os meus pais precisassem de consultar um (pedo)psiquiatra quando vissem a tristeza acumular-se em mim à medida que os dias escolares progredissem, sem me deixar tempo para viver nos intervalos saborosos de não-escola.
Quem sou construiu-se em percentagens variadas por efeito da genética, da educação dos pais e da educação providenciada pelo tempo sobrado da escola, que era muito, felizmente. A escola lá teve o seu papel, um professor ou outro deixaram boas marcas, mas não foi a escola que me fez no mais essencial da minha essência. Disso tenho a certeza. E ainda bem que não foi. Porque a verdade é que não pode ser nem tem de ser assim.
Lembro-me de ter frequentemente horário de manhã e as tardes por minha conta. Uma alegria. A sorte de ter a Mãe em casa e de poder regressar ao lar ao invés de um ATL, explicador ou até mais escola, mais disciplinas, mais aulas de qualquer coisa. Lia. Sim, lia muito. Juntava-me com os amigos nas escadas do prédio em Lisboa e foi com eles que aprendi a tocar viola. Escrevia poemas, histórias, inventava jornais, fazia desenhos, pintava. Namorava, trocava livros e LPs... assim conheci muitos músicos que desconhecia. Íamos com a Mãe ao cinema, fazíamos chás com as bonecas quando o urso da Isabel fazia anos (ele fazia anos várias vezes por ano) e até o monopólio com os manos, e outros jogos de grupo, tinham sabor especial nas infinitas tardes partilhadas a quatro, cinco com a Mãe presente mas deixando-nos espaço para respirar. Brincávamos aos 5 e aos 7 com os amigos do "ciclo preparatório", íamos para o terraço de binóculos a ver se descobríamos matrículas de carros roubados (que os jornais da altura divulgavam), aventuras inventadas. Às vezes descíamos, para mais aventuras cheias de ervas daninhas, até às ruínas de uma casa velha que mais tarde se transformaram na embaixada da Rússia (depois do 25 de Abril). Estudava, muito, que o tempo era suficiente para tudo. E o Pai chegava do trabalho e fazia experiências de física e propunha desafios. E brincávamos aos correios tardes inteiras, preenchendo impressos que a Mãe trazia de lá, escrevendo cartas que o carteiro colocava em cada divisão da casa. Desenhávamos selos, construíamos envelopes, fazíamos moedas passando os lápis de cor em papel sobre a textura original dos escudos, que depois passávamos tardes a recortar, desenhávamos notas, às vezes as três manas alinhavam nos "cóbois" e nos "índios" do mano, simulados por ínfimos bonequinhos de plástico, aos quais se juntavam soldadinhos. Fazíamos tendas em papel, os ladrões roubavam bancos, os bons prendiam os maus. Ensaiávamos peças de teatro para apresentar aos pais. E nós, as mais velhas, fazíamos de professoras para a mais nova: senta-te aí, agora vais aprender a história de Portugal. Não quero. Ó Mãe!!!!! Olha elas! Tem que ser. Tens de aprender. Também lhe líamos histórias e a Lena fez em pano o duende da Floresta da Sophia de Mello Breyner para oferecer à Isabel (que tinha o mesmo nome da heroína)... foi uma das prendas de aniversário (sim, as prendas entre nós eram feitas, pintadas, construídas num tempo sem dinheiro fácil). Eu costumava fazer roupas para as bonecas dela... tricotava e cosia coisas mínimas. A certa altura comecei a fazer camisolas e vestidos para mim em estilo muito "freak"... No liceu e na Universidade usei bastantes...

Eu não sei muito, realmente. Mas sei do bom que era uma falta ou outra de um professor, sem exageros (os pais preocupavam-se, claro, se a coisa ultrapassava o esporádico), do primeiro café num café, da conversa com os amigos, do poder estar um bocadinho na presença daquele que se amava secretamente, mesmo sabendo que nunca olharia para nós. Crescer, cresci realmente nos intervalos da escola, no tempo que os pais nos dedicavam, no tempo que tinha para decidir o que fazer com ele. Por isso a escola sabia-me bem. Gostava de lá voltar. Ela não me cansava, era um espaço amigável onde podia respirar, um espaço sem exageros, sem excesso de zelos e protecções. O espaço do primeiro beijo, do primeiro poema, da primeira flor.
Oh juventude feliz a minha na escola. Que pena tenho dos miúdos agora.
Repito o que tenho dito tantas vezes e disse mais acima: se eu tivesse de andar hoje na escola ia ser profundamente infeliz. Tenho a certeza de que a detestaria e provavelmente nem seria a aluna que fui no tempo em que tive a felicidade de lá andar.
Mais tempo de ocupação não significa mais qualidade na educação. Um princípio tão aparentemente simples e tão ignorantemente ignorado.
A escola a tempo inteiro? Não, muito obrigada.
Verdade, verdade, eu ainda sou aquela criança de que vos falei. Por isso o tempo inteiro em excesso por lá, por coisa nenhuma, em nada tem beneficiado os meus alunos. Se eu não escrever um poema, se eu não inventar uma canção, se eu não pintar uma aguarela, se eu não ler muito, se eu não estudar, se eu não recuperar do cansaço de um dia para o outro, não poderei ser a melhor professora do mundo. E era só isso que eu queria ser, por favor, se fosse possível. Pode ser? Não me chamem preguiçosa. Eu não desperdiço os dias. Nunca desperdicei o tempo que me era concedido. Transformei tudo em flores que lhes ofereci.
Qualquer professor tem obrigação de ser um artista exigente na sua arte, não o dever de ser um funcionário automatizado e frio.
Eu sei que não será fácil de entender para alguns, mas é que não consigo explicar-me melhor a esta hora da manhã (que é aquela hora que reinventei, para ser possível continuar a fingir que existe um bocadinho de tempo de não-escola, esticando os dias como pastilha elástica...).


13 comentários:

Anónimo disse...

...eu também me lembro desses dias, que bom que era poder brincar... tenho duas filhas, a mais velha está no 7º ano, parece que está na universidade... o tempo "livre" que tem é para estudar... tem 12 anos... brincar em tempo de aulas??? nem pensar... tem bons resultados, pois tem... mas preocupa-me o facto de não ter um bocadinho para ler (ler só os manuais ou então nas férias), brincar, estar com os amigos...poder ser criança...
...a mais pequenina, está a ser pior, tem aulas durante todo o dia, das 9h às 17.30, isto é pedagógico??? tem 7 anos... quando irá brincar??? nas férias???
Eu também tenho pena das crianças de agora.
Beijinhos

Anónimo disse...

Foi �ptimo fazer este regresso ao passado pelas tuas palavras...bons tempos de boas e demoradas brincadeiras...Tamb�m os especialistas como Pedro Strech e Daniel Sampaio n�o se cansam de afirmar os perigos da sobreocupa�o nas creches e mais tarde nas escolas (e n�o s�nomeadamente at� relativamente aos efeitos nefastos sobre o pr�prio sucesso escolar. Mas porque ser� que os ministros/legisladores do Pa�s n�o ouvem os mais entendidos? Algu�m perguntou a opini�o aos professores e aos psic�logos quando inventou essa tremenda asneira da "escola a tempo inteiro"???

Anónimo disse...

Obrigada pela viagem de regresso a uma infância que também foi a minha! Quantas vezes penso como fui uma privilegiada por ter vivido a calma, segurança e "tempo livre" que então tinhamos! E confesso que aos meus filhos, agora jovens adultos, sempre procurei deixar margens para poderem brincar, ler, ver filmes e dar largas à imaginação, mesmo quando as obrigações, por vezes exageradas, da escola tinham de ficar um pouco para 2º plano...Não estou arrependida. A "teia" que criaram entre irmãos e amigos mais proximos vale bem o facto de lhes poder ter passado ao lado uma carreira "de topo".
Um beijo e os votos de que este bom senso nos norteie sempre como professores ou educadores.

Anónimo disse...

Querida amiga:
Mais uma vez: como eu gostava de saber passar para palavras tudo o que sentimos da maneira que o fazes!
Mais outra vez: obrigada por o fazeres por mim, por nós.
Um abraço,
Emília.

Anónimo disse...

Olá professora acabei de fazer um novo projecto no Scartch que é virado para o Poético chama-se Cores Simples (anida tenho que descobrir com se põe os Scrpts às cores)

Francisco

Anónimo disse...

TRiste realmente é tanta gente constatar o óbvio e quem comanda insistir nos erros (com a conivência de uma confederação que fala, pensa, em nome de todos os pais). Coisa que não entendo.

E Francisco, amanhã vou a correr ver que agora já é tarde e a tua professora acabou de chegar da escola dela e está cansadita! Beijinhos a todos!

João Paulo Proença disse...

Olá Teresa:

Eu que até nem gosto desta ideia das comparações e da ideia que "dantes era tudo bom" e "agora estamos perdidos"... E do "ó tempo volta para trás", pois acho que, por exemplo, o paradigma da escola que eu frequentei não serve para a educação dos jovens do séc XXI, pois era elitista e não era para todos e fico até feliz por perceber que certas ideias de escola nunca mais voltarão, reconheço que adorei o teu texto.

Penso mesmo que é necessário que esse tipo de vivências e de ideia de escola possam ser aplicadas aos jovens de hoje. DE facto a escola não é só o espaço dos "saberes escolares" é também o local de socialização e de aprendizagem do meu lugar na sociedade. O lugar e aprendizagem da amizade e dos valores. O lugar do "prazer de não cumprir um dever", ...

Adorei

Vou imprimí-lo e colá-lo no meu diário

Obrigado Teresa
Esse texto ajuda-nos a repensar até o nosso papel de pais (e eu que até nem os mando (os meus filhos) para ATL e violas e danças e ...)

P.S. para que não se pense que sou um idealista, aconselho a leitura dos artº 7º e 9º da Lei de bases do sistema educativo - Objectivos dos ensino básico e secundário - Lei 46/86

João Paulo Proença disse...

Olá Teresa:

Eu que até nem gosto desta ideia das comparações e da ideia que "dantes era tudo bom" e "agora estamos perdidos"... E do "ó tempo volta para trás", pois acho que, por exemplo, o paradigma da escola que eu frequentei não serve para a educação dos jovens do séc XXI, pois era elitista e não era para todos e fico até feliz por perceber que certas ideias de escola nunca mais voltarão, reconheço que adorei o teu texto.

Penso mesmo que é necessário que esse tipo de vivências e de ideia de escola possam ser aplicadas aos jovens de hoje. DE facto a escola não é só o espaço dos "saberes escolares" é também o local de socialização e de aprendizagem do meu lugar na sociedade. O lugar e aprendizagem da amizade e dos valores. O lugar do "prazer de não cumprir um dever", ...

Adorei

Vou imprimí-lo e colá-lo no meu diário

Obrigado Teresa
Esse texto ajuda-nos a repensar até o nosso papel de pais (e eu que até nem os mando (os meus filhos) para ATL e violas e danças e ...)

P.S. para que não se pense que sou um idealista, aconselho a leitura dos artº 7º e 9º da Lei de bases do sistema educativo - Objectivos dos ensino básico e secundário - Lei 46/86

Anónimo disse...

Eu sou como tu, João. Detesto esse discurso do "intigamente" e tu bem reparaste como não era essa a intenção, até porque praticamente só falei dos tempo de "não-escola" e dessa escola com tempo para a indispensável socialização que se está a perder de forma assustadora. O problema é que as poucas conquistas dentro da sala de aula (infelizmente acredito que muito se disse mas pouco realmente se inovou e se procurou ajustar às necessidades actuais dos alunos e da sociedade)correm o risco de se perder porque um professor sem tempo acomoda-se, pára de estudar e procura meios de ensino que não lhe roubem mais tempo do que o que o sistema já lhe rouba. Ou seja, temo o empobrecimento didáctico e pedagógico resultante desta infeliz construção do tempo nas escolas. O professor é importantíssimo precisando de espaço para crescer, acompanhar a evolução do mundo, renovar-se e renovar a sua abordagem ao conhecimento com os alunos. E o aluno precisa de respirar para além dos muros da escola e dentro dela. E precisa que seja útil e rico o tempo que lá tenha de passar. É útil reflectirmos e erguermos as nossas vozes enquanto professores e pais (já que os mais pequenitos não conseguem fazê-lo). Porque, por muito jeito que possa dar aos pais este excesso de tempo passado na escola, pelo tempo sobrado para os seus afazeres, acho que poucos têm a noção do que está a ser sacrificado. E a produção em massa de adultos infelizes no futuro, cinzentos e pouco criativos não servirá em nada a nação. Como dizes, sem esse prazer de não cumprir o dever, sem tempo para brincar, sem tempo para a poesia, onde fica o mais humano de nós?
Obrigada pelas visita e pelas tuas palavras. Abraço.

João Paulo Proença disse...

Citando-te
"Eu sou como tu, João. Detesto esse discurso do "intigamente" e tu bem reparaste como não era essa a intenção, até porque praticamente só falei dos tempo de "não-escola" e dessa escola com tempo para a indispensável socialização que se está a perder de forma assustadora"

Oh Teresa, eu não te estava a criticar. Adorei o teu texto...

Isto eram reflexões minhas sobre gente que na escola me vem dizer: "pois, dantes é que era bom", "pois, agora eles não aprendem nada...", "pois, eu cheguei onde cheguei porque..."

Como o teu texto falava de um passado, associei... Mas, como te disse adorei e acho que tens toda a razão, falta de facto esse tipo de vivências às crianças de hoje...

bjs

Teresa Martinho Marques disse...

Oh João! Não te preocupes!Eu percebi! Não me expliquei foi bem :) Percebi exactamente o que querias dizer e que isso não implicava nenhuma crítica pois não era esse o sentido do meu texto. Só reforcei esta coisa do "intigamente" porque concordo em absoluto contigo. E para que quem cá chegasse percebesse a diferença que existe entre os dois discursos. As palavras às vezes não se expressam como queremos mas chega-se sempre a bom porto! Abraço :0)

Miguel Pinto disse...

A escola é ou não um espaço de liberdade?
Numa escola, o obrigatório será inconciliável com o facultativo? As actividades obrigatórias e as actividades facultativas terão o mesmo alcance pedagógico? :)

Teresa Martinho Marques disse...

As tuas (boas) perguntas... Pois... reflictamos...