Quando se sabe que no mundo de hoje cada vez mais os adultos têm menos tempo para as suas crianças e lhes dispensam progressivamente menos atenção de qualidade (excepção feita à atenção que lhes é dada enquanto potenciais consumidores) seria de esperar que a escola se organizasse (como em certos países que estão entre aqueles com melhores resultados nos testes internacionais) para lhes garantir esse tempo, tantas vezes subtraído em casa e na vida pela configuração da correria dos tempos modernos, tempo que é cada vez mais necessário à medida que a sociedade da informação e da tecnologia os afoga numa oferta impossível de gerir sem apoio e ajuda.
Mas não. Somos um país muito especial.
Em vez de fazer os investimentos com mais sentido, à luz do exemplo dos melhores, apostámos exactamente no sentido oposto para poupar uns tostões.
As turmas passaram a ser de maior dimensão, independentemente de integrarem ou não crianças do ensino especial, crianças que não dominam o português, crianças com graves problemas sócio-económicos e familiares (que foram excluídas dos normativos e perderam o direito ao estatuto de alunos com necessidades educativas especiais - tenho mais do que uma em mãos)...
Nem seria preciso que existissem. Sei bem a diferença entre ter 20 alunos ou 28... independentemente de quem lá esteja. Eles precisam TODOS de uma atenção que a escola, neste momento, não lhes consegue dar. Quarenta alunos era coisa que funcionava num tempo que não é o nosso tempo. Ou é para lá que caminhamos?
Os professores deixaram de ter tempo para apoiar, escutar, estar com os seus alunos em projectos paralelos e enriquecedores (sempre usei o meu tempo na componente não lectiva para garantir mais e melhor para os meus alunos e, frequentemente, tal traduzia-se em actividades como ensaios, encontros, trabalho extra e depois apresentações à escola e aos pais). Agora o tempo do professor é distribuído aleatoriamente pelas turmas da escola que não são as suas, em substituições (algumas anedóticas... obrigar as crianças a ter aula de substituição para coisa alguma, das 17 às 18:30, no período em que um professor de Ed. Física gozou a sua licença de paternidade, em vez de irem para casa depois de um dia inteiro metidas na escola!), em apoios de 45 minutos semanais por turma que não chegam para compensar as dificuldades de muitas crianças, em actividades extra-curriculares para as quais não existe tempo de preparação, nem tempo de trabalho de acompanhamento, no caso, por exemplo, de se relacionarem com as tecnologias ou outras actividades que impliquem mais tarefas do que as exclusivamente feitas nesses parcos tempos (que o diga eu ou a Nena que costura fatos noite fora para o seu núcleo de dança renascentista...).
Os professores (a escola) correm agora de um lado para o outro apagando fogos, preenchendo mil papelinhos, reunindo vezes sem conta para pouca coisa, sem tempo sequer para ver os testes ou preparar melhores materiais e melhores aulas dentro do tempo de componente sem aulas que lhes está atribuído.
E não me venham falar da minoria que pouco fazia. Eu não tenho culpa nem tenho de ser prejudicada, ou ver os meus alunos prejudicados, por conta de quem não cumpria. Quem não cumpria, continua a não cumprir, porque o coração não está onde devia estar. Não são mais horas na escola e papelinhos bem preenchidos que definem o bom professor. Está no sangue. É coisa de essência, de alma, de entrega genuína, de postura de escuta e de respeito pelos seres pequeninos à nossa frente. Amor mesmo. E ninguém ama ninguém só por ser obrigado a estar mais tempo com esse alguém sem projecto, sem sentido, apenas porque sim.
Portanto,
este estatuto não serve as crianças que são o mais importante na escola, divide, exclui os melhores, não estimula a formação docente, o investimento sério e aprofundado em coisa alguma...
este modelo de avaliação coloca qualquer um no papel de avaliador sem critério justo, não ajuda o professor que precisa de ajuda para ser melhor professor, permite ao medíocre ter Bom, mas nem com óculos de forte graduação, ou um microscópio electrónico, identifica ou valoriza o trabalho do professor Excelente. Cola-lhe um rótulo qualquer com contas de merecearia e pronto, está feitinho...
Não é rebeldia vã, não é birra, não é nada a não ser um profundo carinho pelas crianças e um medo imenso, intenso, de que tudo o que tem sido feito pela tutela acabe por destruir o que de mais bonito conseguimos construir ao longo dos anos na Escola Pública. Sei bem da minha tristeza agora quando entro pelos portões da escola. Tristeza que só se apaga quando fecho a porta da sala de aula atrás de mim. Passei muito nestes mais de 20 anos e nunca senti nada parecido com o que sinto hoje. Confio no meu juízo, na verdade e honestidade dos meus sentimentos. Não pretendo ser heroína de coisa alguma, nem mártir, ao desistir de ser titular, ao combater este absurdo na escola em todos os espaços desde o primeiro dia, ao decidir não entregar os objectivos individuais nem ser cúmplice deste colossal e perigoso equívoco de trevas em que o sistema educativo vive mergulhado, que afasta os professores dos alunos, que rouba às crianças um tempo precioso que é seu por direito.
Estou apenas, e só, a ser Professora, Mãe, Leoa protegendo por todos os meios ao seu alcance as suas crias e as crias desta terra: o bem mais precioso do futuro de qualquer país.
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Dá-me um prazer imenso, no pouco tempo que tenho, escutar as crianças falar do seu trabalho... Precisam dessa atenção para crescer do lado certo da vida. Aqui, no Clube, com alunos que às vezes não são meus (é o caso da Supergirlie - 5º ano, 10 anos) procuro seguir o exemplo do mestre Zen que explicava ao seu discípulo como se alcançava a iluminação da verdadeira sabedoria: comendo, bebendo e dormindo. Ao espanto do aluno que, como argumento, insistia que todos faziam isso, o mestre respondeu: pois é... mas nem todos comem quando comem, bebem quando bebem e dormem quando dormem. Queria ele significar que a nossa mente tem de reaprender a estar onde nós estamos, atenta ao que fazemos, à magia do momento presente, sem fugir sempre, divagar para onde as preocupações a arrastam. Treina-se essa postura e capacidade com os gestos simples e mais acessórios, para que perdure nos que são verdadeiramente essenciais.
Quando escuto uma criança, escuto-a. Não estou noutro lado qualquer. Estou com ela. Apenas com ela. É como beber uma chávena de chá sentindo o aroma, o sabor, o calor da chávena nas mãos e tomar consciência de tudo isso sem deixar a mente desviar-se um milímetro sequer das sensações ali, naquela hora.
Isso só pode acontecer numa Escola crítica, com tempo, respeito, serenidade, pacificação...
Essa é escola que eu imagino, desenho mentalmente todos os dias... muito diferente desta que temos. É por uma Escola digna desse nome que cumpro os gestos diários com as crianças que acolho e escuto. É por ela e por elas que luto.
Votos de Boas Festas
Há 6 anos
11 comentários:
3za, tens uma 'distinção' para levantares no meu blogue (está em adenda ao meu último post).
Beijinho grande
Obrigada Isabelinha... é especial vinda de ti... :) Professora-exemplo que tanto admiro. Mesmo não seguindo os procedimentos (tenho recebido alguns nos últimos dias e a vida está complicada) agradeço de coração o carinho da entrega do ouro feminino a este meu cantinho cheio de fios entrelaçados em tantas direcções... Beijinhos muitos!!!
Como recrias bem as palavras para dizeres as verdades que sentimos.:)
Saem das entranhas...cascata às vezes difícil de conter...
Costumo passar por aqui sem deixar rasto. Desta vez não consegui. Porque concordo com este texto. Palavra a palavra. Com todas as palavras...
Obrigada, Ana... por teres deixado um rasto hoje :)
As visões burocrática e economicista e a desumanidade são a raiz do problema.
Definir políticas educação não é fácil, para mais num sistema fortemente centralizado, mas era possível melhorar a educação, cujos principais problemas resultam mais de ideologias e opções políticas erradas do que das práticas docentes, sem humilhar quem sempre cumpriu.
Optou-se por absurdos, caso do concurso para Titulares, os resultados estão à vista.
No essencial: qualidade da formação inicial de professores e modos de a regular, verdadeira diferenciação pedagógica, currículos e a ausência de orientação vocacional dos alunos à entrada do secundário, daí os 40% de insucesso neste neste nível até há uns anos, não mudaram, ou quando mudaram foi para pior (o novo regime de habilitações para a docência, por exemplo).
A educação centralizada não sai disto (qual é bom sistema educativo europeu centralizado?). Venha alguém com juízo.
o desabafo.Sempre passo por aqui e vejo teu tom de leoa...muito bom!
Pois...
"Quando escuto uma criança, escuto-a. Não estou noutro lado qualquer. Estou com ela. Apenas com ela."
Só assim, escutando assim, podemos esperar ser ouvidos...
Bjo, EdMar
Faz sentido... :) E realmente não em queixo... a maioria escuta... escuta sim...
Beijinhos
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