Pois, senhor Professor, desista.
Isso de andar a dizer que uma das condições para se conseguir algum sucesso no desenvolvimento de competências nos alunos é a mudança de identidade do professor e que, entre as várias mudanças, se deve incluir a tal prática pessoal do uso dos conhecimentos na acção, é puro devaneio para quem, embora pelo currículo não pareça, sabe muito mais do que o senhor e afirma com actos que um professor é (apenas) um funcionário! Aprenda com eles! O dito funcionário tem de estar muitas horas ao serviço, com muitas e estéreis reuniões, com muitas tarefas destituídas de sentido que lhe esgotem o ânimo, até para as aulas (tarefa secundária), mas transformem a escola na perfeita creche a tempo inteiro e a baixo custo. Depois avalia-se tudo bem depressa com prazos de corridas de cavalo ou de galgos, como se engole um remédio amargo, pontua-se, arrumam-se os papéis e tudo continua descansadamente na mesma.
Se quem gere os destinos da educação portuguesa o desdiz, por que nos diz o Professor, que nem ministro é, tão pouco secretário de estado ou coisa que o valha, que:
(...)Um professor de ciências que não participa em nenhum processo de investigação ou de aplicação tecnológica dos seus conhecimentos, que nem sequer realiza actividades experimentais, terá alguma hipótese de representar de maneira realista o funcionamento dos conhecimentos na acção? Um professor de língua materna que não mantém nenhuma correspondência, que não escreve nem publica nada, que não participa em debate algum, que não intervém em mais nenhum lado para além da sala de aula, poderá ter uma ideia realista do "que quer dizer falar" (Bourdieu, 1982), ou do que significa escrever? É verdade que a aula é um mercado linguístico sobre o qual o professor deseja reinar. Se nunca se deparar com outros mercados linguísticos, o que poderá saber da palavra ou da escrita como ferramentas nas relações sociais? "Uma pedagogia das competências requer uma transposição didáctica tanto a partir das práticas sociais quanto a partir dos conhecimentos eruditos descontextualizados" (Martinand, 1986). As práticas sociais não estão vazias de conhecimentos sejam eruditos ou comuns. Os profesores exercem um papel definido, do qual só se pode ter uma ideia exacta por meio de uma experiência pessoal. Um especialista, por exemplo, utiliza os seus conhecimentos como ferramentas para a acção. Pode imaginar-se um treinador desportivo ou um professor de dança ou de música que não tenham praticado e continuem a praticar a um nível aceitável o seu desporto ou a sua arte? Para ensinar conhecimentos, basta ser um pouco erudito; para formar em competências, melhor seria que parte dos formadores as possuíssem... (...)
Philipe Perrenoud, Construir as Competências desde a Escola. Artmed Editora, 1999
"Cadê" o tempo para isso?
Olhe eu, por exemplo, há uns anos ainda pude montar um borboletário no jardim, investigar factores que influenciam o desenvolvimento dos lepidópteros, filmar, qual David Attenborough, a metamorfose do Papilio machaon, partilhar com os alunos as descobertas, comunicar o gosto pela investigação, pela observação... Mas isso foi num tempo absurdo em que os professores tinham tempo a mais e nem sabiam o que fazer com ele: imagine! Criar borboletas! Escrever uma ou outra poesia sobre matemática, e não só, para levar para as aulas e estimular os mais novos para a leitura, estudar bem os modelos de trabalho de países com sucesso na matemática, adaptar, produzir materiais, estudar para melhorar o trabalho com os alunos, comprar livros variados sobre educação, lê-los, reflectir, conceber acções de formação (projecto educativo, TIC, didáctica da matemática...) e frequentá-las com tempo para aprofundar conhecimentos, tudo coisitas sem jeito, sem sentido, para um professor que tem de leccionar quatro programas diferentes de Matemática e Ciências, com temas do mais variado que se possa imaginar (quando formos generalistas, então...).
Agora sim, estamos como devemos estar: em correrias tontas, em sobressalto, substituindo aqui e acolá, horas disto e daquilo, muita reunião estéril, poucas horas em casa a ler, estudar ou preparar materiais, não vá o diabo tecê-las e a tentação de ver novelas e futebol apossar-se de nós, oh seres de fraca vontade que são os professores e em quem não se pode confiar...
O que me diz disto, senhor Professor?
Talvez seja melhor recomeçar os seus estudos e aprender aqui connosco alguma coisa nova que lhe deve ter escapado, enquanto andou por aí distraído a congeminar essas teorias que obrigam o professor a uma formação cuidada e a tempo, muito tempo, para realmente desenvolver competências seriamente que lhe permitam ser um professor para o século XXI...
E embora comece a ser cada vez mais complicado, prometi e vou colocar no blogue dos meus meninos uma remota lembrança do tempo em que com tempo, dignidade e seriedade, aperfeiçoava as minhas competências individuais e melhorava o meu desempenho profissional, preparando materiais bem especiais para as crianças: momentos da vida que só conseguiam ver na BBC e que uma professora mostrava poder ser feito, com paciência e empenho, por qualquer um, fosse ele professor, aluno, enfim... São metamorfoses, senhor Professor, metamorfoses! (Há muito disso na educação... chamam-lhes reformas, mas normalmente têm defeitos nas asas e não voam... já as minhas borboletas, senhor Professor... as que vou mostrar aos alunos... já essas...)
(Para quem esteja interessado em ver a borboleta sair da crisálida, mas esteja cheio de falta de tempo, recomendo deixar carregar por inteiro o filme enquanto fazem outra coisinha, e depois fazer uso do cursor que, devidamente arrastado, permite ver tudo a correr, género filme-mudo. Como também não houve tempo para acrescentar uma música no Jumpcut - só deu para exportar para mp4 e fazer upload no imeem, baixem o volume e observem apenas, com música à vossa escolha ou em silêncio.)
Um obrigada especial ao Carlos Filipe, meu colega, que no seu nenhum tempo me converteu as mini-cassetes para DVD. Tenho mais filmes, mas não tenho tempo para os tratar convenientemente e partilhar com os alunos, agora que estamos a trabalhar os animais nas aulas de Ciências e que as metamorfoses foram um dos temas trabalhados. Condições impostas por um ministério mais interessado em pontos e em números, do que propriamente em crianças e no seu direito a uma educação de qualidade. Sinais dos tempos neste nosso Portugal.
Votos de Boas Festas
Há 6 anos
5 comentários:
No seu fascínio pelos números, este Ministério da Educação criou um uma nova visão da escola que, certamente, ficará conhecida como numeracionismo (ou grelhismo) que se define da seguinte forma:
1- O conhecimento é a quantidade de coisas que os professores despacham nas aulas;
2- O objectivo da escola é ter muitos clientes (abandona-se, definitivamente, a noção de aluno) que realizam muitas tarefas num tempo determinado a que chamamos ano (mas sem a palavra lectivo que é uma noção antiquada) e os professores (agora elevados à categoria de tarefeiros) têm muitas reuniões e grelhas para preencher;
3- Os professores não precisam de saber a matéria que vão dar ou aprofundar os seus conhecimentos (a não ser na área da informática que para poderem preencher as sobreditas grelhas);
4- A forma de determinar o sucesso de uma escola é medir o número de objectivos executados, a quantidade de grelhas preenchidas e mais umas coisas do género.
A avaliação do ME será feita segundo o método científico chamado olhómetro.
Cara colega...bem ia chamar-lhe um nome lindo "Araneus diadematus" , mas prefiro qualquer coisa do estilo da minha mãe " Aranhiça que Tudo Cobiça"!
"Chiça " que você está no estilo definido por Richard Davidson: o seu hemisfério direito do cérebro é ágil a transmitir para o centro da fala do lado esquerdo , o do lado racional e lá bem "molhada"! Dentes da quelícera preparados , quando não pedipalpos, e nem o desgraçado do Perrenoud escapa da Teia!
Calma, que gosto do homem
e ele não escreveu para "trols" de secretariado ou amibas ministeriáveis, nem tem culpa de isto ser um portugaleco, reco reco, reco, mesmo marreco!
Depois como muitos "Peda", escrevem para situações ideais como sabe, ou como também sabe, as mais lindas e deliciosas experiências educativas, aconteceram em escolas particulares e não nas públicas! Azar o nosso!
Claro que percebi a sua ironia, mas está mesmo irritada! Que os seus alunos não paguem por isso ( sei que não pagam), porque infelizmente na minha escolinha vai-se confundindo "bota com perdigota" e depois lá ouço da minha miudagem " Ó Prof, os Profs andam malucos? É um desatino!".
Digo-lhes que isso passa, é do tempo!
O Perrenoud tem razão, como você a tem, dos cabeças ocas dos políticos lhe permitirem demonstrar a razão do homem! Percebi a mensagem? Acho que percebi!
Cada raiva sua um fio de teia que se rompe, mas incansável trabalhadora, lá o reconstrói!Vale a pena ser "aranhiça" acredite!
Eu estou a ir mais para o burro teimoso!
Óbviamente " Não lhe permitirem demonstrar" e não permitirem. Malhas que as teclas tecem.
Desculpe, mas...sono muito sono a precisar de sesta de acalmia, levou a
escrever "bem molhada" em vez de vem!
Pois... pois...
Gosto de Perrenoud. Muito. Mesmo quando escrevem para as situações ideais, eu que gosto de sonhos, não me importo e tento tecer mais um fiozinho em direcção à utopia. MAs os meus alunos não pagam... nunca. É vê-los felizes com as mil coisas que fazemos juntos, mesmo as chatas e exigentes (que não os privo de desafios bem complicados). Quando mais irritada com o sistema, mais me afasto da escola fora da sala de aula e me empenho junto deles! Coisas... Talvez um escape... porque gosto muito do trabalho com os meninos e cada vez menos do trabalho sem eles. PAra eles não vai faltar nada de essencial!
E JL... sempre na mouche. O que se há-de fazer? Quem não sabe é como quem não vê... Talvez um dia percebam... (estou nesta frase com uma fé descontrolada e um optimismo desfronteirado). Obrigada pelas vossas palavras com sono, sem sono, saborosas sempre.
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