quinta-feira, novembro 16, 2006

Aqui há gato...

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Se é verdade que, com frequência, partilho o prazer da leitura em circunstâncias várias, com todo o tipo de pessoas e nos mais variados contextos (quantas vezes um poema de Pina na aula de Matemática? Um de Gedeão na aula de Ciências?), não é menos verdade que nunca me lembrei de o fazer com três companheiros a quem roubei o escuro e feridas de rua, oferecendo-lhes em troca cuidado e claridade.
Podem dizer-me: São gatos, ora! Faz algum sentido ler uma história a um gato? Talvez tenham razão... mas se falamos com eles, por que razão não faria sentido oferecer-lhes um som menos banal e funcional, um som que tenha sido escolhido com critério e cuidado para dar prazer a quem serve e a quem recebe o petisco?
Resolvi arriscar, mesmo antecipando a complexidade da missão.
Primeiro, escolher. História de uma gaivota e do gato que a ensinou a voar? O G é um gato enroscado? Percorri a prateleira e encontrei, quase escondido, o sabor certo pedindo para ter o prazer de ser recordado em voz alta: O Gato e o Escuro de Mia Couto. Creio que queria fazer com que a negra Pantera (a adoptada mais recente) não se sentisse a sombra da casa na cor e na alma (isto, claro, acreditando que em cada gato mora uma alma... ou até mais do que uma).
Texto escolhido na mão, dou o passo seguinte. Era preciso reuni-los todos à minha volta e sobre a cama (melhor sítio para ler). Depois mantê-los acordados... Ainda pensei em explicar-lhes que não era bonito adormecerem enroscados enquanto lesse para eles, mas decidi não o fazer. É responsabilidade minha não os deixar adormecer, pensei. Também consegui ceder à tentação de ter perto de mim, bem à vista, as suas guloseimas favoritas. Optei por confiar apenas no poder exclusivo da expressão genuína do meu prazer, sem envolver aromas paralelos com cor a chantagem.
Portanto, dispensando quaisquer acessórios ou explicações, comecei.
“Vejam, meus filhos, o gatinho preto sentado no cimo desta história...”. De soslaio, pareceu-me vê-los franzir os bigodes de estranheza: Gatinho? Ela disse Gatinho? Mas eu sou uma gata!... Por que razão está ela em cima da história e não nós os dois que somos mais antigos na casa? Mas podia ter sido apenas impressão minha. Tendência para interpretar os movimentos dos ouvintes a nosso desfavor, se a falta de confiança no sucesso da missão ultrapassar a entrega e o prazer...
Continuei, pois, cada vez mais esquecida deles e mais concentrada nesse prazer que sempre me oferecem as palavras deliciosaborosas do Mia. “... vou aqui contar como aconteceu essa trespassagem de claro para escuro...”. Eu olhava agora, sem ver, os olhos abertos dos ouvintes, sem perceber que o meu entusiasmo crescente se ia entranhando no pêlo deles, de forma diferente em cada um. A preta Pantera estava feliz por ver o escuro no centro das atenções, o branco Jasmim concentrava o azul safira dos seus olhos no sonho de brincar “nessa linha onde o dia faz fronteira com a noite”, o Clóvis, mais velho, imaginava-se Pai, em vez da mãe da história, a cuidar dos seus, a consolar tristezas, a pronunciar palavras sábias “dentro de cada um há o seu escuro. E nesse escuro só mora quem lá inventamos...” e a deixar o escuro “ataratonto” ao perguntar-lhe se queria ser seu filho...
As palavras do Mia sairam de si próprio a saber ao que ele mais gosta. Na minha boca passaram a ser mousse de chocolate (sobremesa favorita) e, mal fugiam de mim, transformavam-se no petisco preferido de cada um dos gatos. Eu era também, ao mesmo tempo, “mãe gata sorrindo bondades, ronroronando ternuras” não para o escuro, não para os meus ouvintes, mas para mim própria, lá no sítio onde se vive quando estamos a ler deslembrados do mundo. Tão bom esse deslumbramento...
E assim, lá acabámos por nos esquecer todos uns dos outros e perdemo-nos, cada um de nós, em cada um dos caminhos de sonho para onde as palavras nos conseguem arrastar. Desculpem, mas nem me lembro o que aconteceu depois. Deixo o relato sem conclusão.
Quem nos quiser encontrar, espreite bem dentro dos nossos olhos. O que é que vão ver? Não, não será “um gato preto enroscado do outro lado do mundo”. Não é. E nem vos dizemos o que pode ser visto. Nem onde estamos. Onde nos perdemos.
Não basta saber para sentir. É preciso sentir para saber.

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Texto elaborado para uma tarefa da Acção de Formação PPL - Promoção do Prazer da Leitura - Animação da Biblioteca Escolar - curso on-line, realizado na plataforma Prof2000, Centro de Formação de Oliveira de Azeméis. Formador: Paulo Izidoro.

1 comentário:

Teresa Lobato disse...

Lindo, o teu texto. Lindo, o conto do Mia. É das coisas mais ternurentas que há. Como os contos do Agualusa, ou o "Velho que lia romances de amor", ou "Doze contos Peregrinos", ou...
Toda a arte que nos fale de ternura, além do prazer que nos dá lê-la, ou vê-la: só mesmo por isso.