sexta-feira, setembro 29, 2017

Sê e faz como eu te digo?

Já vivi mais reformas educativas do que muitos. Uma, de boa memória, como aluna. Recordo o chamado ensino "experimental" nos idos pós 25 de abril, a seguir ao 1.º e 2.º anos do ensino preparatório (o 25 de abril aconteceu quando eu tinha 11 anos). Frequentei a Luís António Verney nos chamados 3.º, 4.º e 5.º anos... que se transformaram em 7.º, 8.º e 9.º depois. Estive inscrita no liceu Camões, mas os Pais eram muito à frente e, depois de um plenário familiar, ponderámos todos juntos os problemas e vantagens de experimentarmos outra formas de ensino, que não as tradicionais. Decidimo-nos pela aventura, sabendo de antemão a dificuldade posterior da transição para o sistema tradicional na alínea F (ciências), antigos 6.º e 7.º anos (atuais 10.º e 11º), seguido do "propedêutico" pela televisão (fui a última geração desse ano estranho). 
Foi difícil regressar ao liceu depois apenas porque nos diziam: vocês é que são aqueles alunos do experimental que não precisavam de decorar nada nem saber nada para passar? 
Doeram-nos estes comentários e as baixas expetativas de alguns professores no Liceu dos Anjos (antigo Académico em Lisboa). Dois anos depois, os quatro alunos da Verney que ali entraram estavam entre os melhores alunos à saída para o propedêutico e universidade. O que nos diferenciava? Adorávamos Camões (na Verney não começámos pelos Lusíadas, não dividíamos orações, a lírica veio primeiro e só depois de autores contemporâneos que aprendemos a ler com prazer). Muitos contos, pequenos romances, poesia... quando amadurecíamos estávamos prontos para qualquer leitura. Escrevíamos todos os dias, muito, sempre muito. Tornava-se um vício, nenhum papel branco nos afugentava. A matemática era um universo em que o conhecimento de factos e procedimentos estava sempre ao serviço da resolução de problemas, do pensar as coisas, do explicar raciocínios. Não... não decorámos a tabela periódica nessa altura, mas num instante o fizemos, porque sabíamos colocar a memória ao serviço do sentido e necessidade das coisas, sabíamos onde procurar informação...  A verdade é que os colegas que haviam chegado do tradicional liceu a tinham apagado da memória nas férias e acabaram por na realidade nunca a aprender como nós. Detestavam Camões, muitos gostavam pouco de ler e mal o professor de filosofia e introdução à política começaram a pedir trabalhos enormes que implicavam consulta de muitas obras na biblioteca... só quatro alunos conseguiam agarrar vários livros, percorrê-los, descobrir dentro deles o necessário e construir trabalhos originais com extensas bibliografias.  Ajudámos colegas nesse processo nos nossos grupos. Sabíamos o valor da entreajuda, da solidariedade, da cidadania ativa.
 Trabalhei o barro numa roda de oleiro, fiz objetos lindos e até um porco mealheiro, soldei com eléctrodos material estragado da escola, desmontei e montei o carburador de um carro, fiz tapeçaria num tear, fiz duas peças de madeira num torno elétrico, fiz serigrafia (depois de cortar um dedo com a goiva com que trabalhava o linóleo... nem sei como todos estes nomes me vieram agora à memória), fiz um filme à Vasco Granja, riscando com canivete fita de bobines, pintei quadros, pintei cenários, lia muito, consultava muitas obras para fazer trabalhos de todas as disciplinas, fiz teatro, debates, pertenci à equipa de basquete e andebol, fiz danças tradicionais portuguesas e tanto mais que nem lembro, e tanto que ainda consigo dizer aqui. Fiz eu, fizemos todos nós nesses anos.

Vem isto a propósito de uma das memória mais especiais: o francês. A minha professora Romana cujo nome está comigo até hoje. Representámos Molière, fizemos um jornal que vendemos na escola a cinco escudos e uma roda viva de atividades imparáveis, como ela era. Trabalhos de investigação, consulta de livros, canções. O francês continua presente em mim como uma língua romântica e mágica. Hoje, pela mão de um colega dessa altura, recuperei uma parte dessa memória. Perdi a minha cópia do jornal da turma, mas ele enviou-me as páginas em que colaborei. E foi isto que me fez desfiar todas as outras memórias e repensar tudo o que se tem vivido nos últimos anos.

Ainda agora, como professora, reproduzo o melhor que vivi nos anos do experimental. Tive uma oportunidade única de fazer um pequeno desvio do circuito tradicional e não foi por isso que deixei de ter notas para entrar na universidade (na altura teria entrado em medicina, se esse fosse o meu sonho). Claro que há muitos outros fatores envolvidos, sendo a família e a educação um deles. Mas o que quero salientar aqui é a experiência educativa rica, completa e articulada em que participei. Não perdi nada, só ganhei. Agradeço aos pais a visão e sabedoria, aos professores que confiavam em nós e nos ensinaram a autonomia, a iniciativa, a criatividade, a solidariedade, a preocupação com os outros e com o ambiente... a competência e as ferramentas para estudar e aprender vida fora. Não receio experimentar, sempre o fiz sem precisar de reformas que a tal me obriguem.

Ao generalizar-se (massificar-se) aquela experiência, feita num universo piloto controlado com  professores preparados para ela, poucas turmas e poucos alunos por turma, perdeu-se muito (quase tudo?) da essência desses anos especiais e quase mágicos. As condições perfeitas desaparecem e é natural que as coisas se desvirtuem em universos alargados sem motivação ou preparação.

Hoje em dia, as reformas sucedem-se sem tempo para parar, respirar, avaliar. Sem tempo para pensar e acordar tempos mais longos e sérios de vigência e ciclos de experimentação e avaliação. Ciclicamente apaga-se a roda, inventa-se a roda, apaga-se o fogo, redescobre-se o fogo, burilam-se as palavras e por vezes, muitas vezes, demasiadas vezes, faz-se maquilhagem do que já se experimentou mais do que uma vez. É legítima a desconfiança, o receio de ser apenas mais uma, porque dá trabalho andar o tempo todo a mudar papéis, nomes, siglas, conceitos. Coisas curtas no tempo de curtas ou médias legislaturas, para a seguir se instalar outra coisa qualquer, ou a mesma coisa disfarçada de outra coisa. A diferença é que agora temos mais alunos por turma, crianças diferentes e mais necessitadas de atenção, mais turmas, mais apoios, mais reuniões, mais tempo na escola, mais papéis, menos tempo para repensar práticas, para ler, discutir, planear. E já nem os computadores se aguentam. Os equipamentos de 2009 estão cansados e este está a ser um ano estranho, em que muito falha no digital/internet. Quando nos queixamos ouvimos uma explicação (será possível?) "que no ministério houve migração de qualquer coisa - servidores?- para qualquer lado, com prioridade de sinal para serviços administrativos e isso e coisa e tal". Vou acreditar que não é assim. E se é, não compreendo. Mas os alunos já se riem quando tento, em mais do que uma sala, fazer algo. Dizem-me compreensivos: professora, faça à antiga!

Anyway... vou continuar a ser eu, porque eu já era e sempre fui como se espera que eu seja agora, e se esperou que eu fosse com o currículo nacional, as competências gerais e o programa de matemática de 2007 (pré-metas... conheço-o bem). E vou continuar a ser eu porque, na realidade, nem sei ser de outra maneira, mais coisa menos coisa, mais reforma menos reforma, mais papel menos papel, mais ministro menos ministro.  E uma parte dessa dificuldade em me acomodar, em aceitar acriticamente tudo o que é feito sem argumentar razões, mesmo cumprindo tudo, em procurar sempre fazer melhor, também se desenvolveu numa escola diferente que até é, sei-o agora, a escola com que sonho e que tento ajudar a construir.

E espero que, antes da minha própria reforma,  o tal pacto educativo aconteça. Não me cansam os alunos, as crianças, o trabalho com eles (que adoro). Não me cansa a inovação, o desejo de fazer melhor, a vontade de aprender.
Cansam-me, sim, as condições em que temos de trabalhar muitas vezes e cansam-me (cert)os adultos cujo Perfil está longe de ser o preconizado para os Alunos à saída da escolaridade obrigatória:  sê e faz como eu te digo? ...










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