sexta-feira, setembro 28, 2007

Programa... é o quê?

Oh professora, posso contar uma coisa antes da aula começar?
Sim, claro.
Ontem eu ia lanchar... e eu normalmente como uns chocolates. Mas lembrei-me das conversas aqui da aula e fui com a Mãe comprar fruta ao supermercado para comer ao lanche.
Já mais dedos no ar.
Professora, eu fiz um esforço (e olhe que eu não gosto nada de alface e nunca como) e comi umas folhas de alface ontem ao almoço!
Professora eu experimentei ontem bróculos e até gostei!
Professora eu agora comecei a comer a sopa...
Sabe professora, como agora ando a fazer o diário alimentar que a professora pediu, parece que sinto necessidade de mudar coisas. Às vezes penso em comer um alimento mas, depois, penso que tenho de escrever lá o que comi e troco por um mais sudável...

Fiquei tão contente com a partilha espontânea... Disse-lhes isso mesmo e lá gastámos mais um bocadinho a pensar numa actividade nova: vão colocar por escrito pequenos progressos/mudanças deste tipo e entregar-me sempre que quiserem, para falarmos em grande grupo das conquistas.

O tempo gasto em conversas e "preâmbulos" genéricos e menos estruturados sobre saúde e alimentação, o tempo de resposta às mil dúvidas, às curiosidades iniciais sobre a disciplina que gosto de apresentar com calma (ai o tempo a correr!) nunca é perdido, mas não contava com estas pequeninas mudanças já tão cedo. Normalmente os pais começam a notar algumas diferenças mais para a frente, se eu conseguir fazer o meu trabalho bem feito... (Que não é, confesso, debitar os imensos conteúdos em cerca de duas horas semanais, explicá-los depressa, levá-los a compreender e a produzir respostas que provem que a "aprendizagem do programa" se deu.)

Costumo insistir nas Ciências da Natureza de 6º ano, logo que apresento a disciplina, que de nada me servem respostas bonitinhas nos testes, sobre os conteúdos trabalhados, se nas suas vidas não se produzir nenhuma alteração importante e consistente de algum hábito prejudicial à saúde.
Conversamos muito logo nas primeiras aulas sobre os erros alimentares, a obesidade, os seus efeitos, os perigos das dietas nestas idades (não coloco panos quentes, exponho a realidade cruamente com os devidos fundamentos e aconselho a ida a nutricionistas, sempre que sinto que há justificação), mesmo antes de aprofundarmos outras questões que ajudarão a esclarecer melhor as razões destas conversas. E insisto com eles (oh se insisto!) que podem acontecer "Muito Bons" nos testes de alunos que saberão na ponta da língua tudo o que se deve e não se deve fazer, e nada alteram na sua vida, e Suficientes e Insuficientes de alunos que entendem o essencial e resolvem autonomamente alterar comportamentos passando a ter uma vida muito mais saudável, mesmo não dominando de forma perfeita os conteúdos.
Pergunto-lhes: o que é melhor? A resposta é óbvia, o que nos deixa sempre baralhados a todos (a mim e a eles). Afinal não andamos na escola para ter Muito Bons nos testes? Para cumprir os programas todos sem muita conversa pelo meio, garantindo a prova em exame que tudo está devidamente memorizado e até "compreendido"? Provavelmente, com estes assuntos na mesa, a melhor resposta é não. Por isso contarei também com os pais para me ajudarem a perceber se algumas competências são realmente desenvolvidas e aplicadas de forma significativa na sua vida.

São conversas um pouco subversivas para ter com alunos, eu sei... mas digo-lhes claramente que prefiro muito mais vê-los a não fumar, comer sopa, fruta, legumes, a fazer exercício, a praticar sexo seguro... do que a ter boas notas nos testes de Ciências por saberem explicar tim-tim por tim-tim as funções dos nutrientes, a mensagem da Roda dos Alimentos, por que razão não podemos abusar das gorduras, por que devemos usar preservativos... e fazendo no dia-a-dia exactamente o contrário.

E o M., que comprou fruta para lanchar e no início do ano me havia dito que não lhe parecia que a disciplina de Ciências do 6º ano tivesse muito interesse, ainda acrescentou: pois, professora, eu até achei que não ia gostar quando vi o manual e os assuntos, mas depois com estas conversas comecei a interessar-me e agora acho que é importante e até estou a gostar...

Sente-se o interesse geral a crescer. Não preciso de mais.

Para a semana, trabalho de grupo: vamos investigar os nutrientes. Apresentá-los à turma. Combinem o que vão e como vão fazer e tragam os materiais de que precisarem.
Hei-de acelerar algures... por exemplo, nos caminhos confusos do sangue pelo coração, deste aos pulmões e ao corpo, mas não pouparei tempo nas formas de proteger este órgão vital... abaixo as gorduras do sangue!
E já a caminho de casa, cruzo-me ainda na rua com a P., que ontem comeu pão com manteiga e fiambre, mais um ice tea (claramente desaconselhados para a sua estrutura física a precisar de intervenção):

professora, hoje comi arroz com feijão e salada ao almoço!

São pequeninos passos. Sei.
A minha função é manter vivas as boas intenções que vão nascendo nos alunos, a partir das sementes lançadas ao seu espírito, e enraizar, tornando automáticos, espontâneos e naturais os gestos que poderão um dia salvar a sua vida, através da necessária prevenção que os hábitos saudáveis de vida promovem. Se o conseguir um pouco à custa do "grau de cumprimento do programa" terei má avaliação no tal parâmetrozinho, mas dormirei de consciência tranquila, com a certeza de que cumpri com rigor e seriedade a minha missão.

9 comentários:

JMA disse...

MIL PARABÉNS! É por estas e outras (mil) razões que não se pode parametrizar a educação, transformar o professor em funcionário. Se cada um de nós fosse um pouco assim (como transparece deste relato)a nossa educação estaria bem melhor....

Anónimo disse...

:)
Sabe bem ouvir...
Obrigada

Cristina Gomes da Silva disse...

Confio muito em ti, 3za e noutros como tu, mas todos sabemos que grande parte não é assim. E a esses o que se faz? Obrigada por seres assim, pode ser que os contamines (aos outros) como se fosse um vírus. Bjs

Anónimo disse...

Eu esforço-me por tentar contaminar... (se me esforço!)... às vezes até me torno um vírus muito melga... Beijinhos

Teresa Pombo Pereira disse...

ai ai ai.... tenho de mandar o meu Ed assitir às tuas aulas. Apesar de ele adorar a prof de CN - hj vinha todo entusiasmado porque o grupo dele fez a actividade experimental toda bem... anda um bocadinho farto das minhas recomendações (mães... que chatas) e oscila entre ir pesar-se ao fim do dia, repetir-me que comeu a sopa e fruta ao almoço e........... hj que teve um almoço de aniversário.... dizer-me que bebeu 3 refrigerantes!!! Socorro!

beijos grandes

Teresa Martinho Marques disse...

Pois... não resultará com todos... mas como sou muito verdadeira e convincente no que digo alguns acreditam e avançam, pelo menos para já. Terei de ter competência para que depis as coisas se mantenham... Bjinhos

Anónimo disse...

:) :)

Vais ter má nota no tal parâmetro?! Ora... ora... Vamos a ver se o teu avaliador (ou tua avaliadora) se atreve!
Eu não conheço o programa, mas há lá concerteza umas sub-unidadezitas de dar a correr e compensas sem mal nenhum...

Não te dou os parabéns, porque já te conheço... Teria que os dar todos os dias ;)

Herr Macintosh disse...

Perguntas o que é o programa. De acordo com o "New Speak" deste Ministério (aqui vai um piscar de olho a 1984), "Programa é um conjunto de coisas que os professores dão nas aulas para poderem ser avaliados por uma grelha".

Anónimo disse...

POis há IC... agora até hei-de descobrir mais... e... Obrigada pelo carinho ;)
HM... grande definição! Vou dormir mais esclarecida... :)