sexta-feira, abril 04, 2008

Carta a um menino...

(...)o meu outro menino que veio tardiamente pisa insistentemente a linha do abandono e da resistência às tarefas... Por que não cantar? Avancei... Nem cinco minutos e já tinha o meu menino diferente a cantar feliz o fado (...) o hiphop pelo meio, o outro menino a prender-se à ideia de apresentarmos a canção no final do ano(...), já com vontade de cantar mas ainda envergonhado... (...) 31 Março

Queria dizer-te que sei.
Que sei da dor do abandono, da tristeza de uma vida que por certo sonhas fosse a de alguém, não a tua.
Queria dizer-te que, embora saiba, não peço desculpa pela exigência, pelas zangas quando não cumpres, pelas faltas quando te atrasas de propósito, por não te deixar fazer como queres - não fazer coisa nenhuma. Que não desisto de te arrastar comigo até onde acho que tens direito a estar.
Deixar-te prolongar na escola essa coisa que te calhou em sorte, condescender por pena, pedir-te menos porque já tens pouco, seria o caminho para coisa nenhuma. Acredita em mim quando te digo que há mais amor na minha zanga do que na indiferença de te deixar aí parado sem te incomodar, aceitando o teu destino sem o desafiar. Já te expliquei que quero que me chames a atenção com coisas doces que me façam nascer sorrisos e não tristezas. A indiferença é outra forma de fingir que não estás, de te abandonar. Já conheces esse sabor triste. Eu quero dar-te a provar outro.

Gostei de te ver sorrir com a canção que levei. De, da segunda vez, já te ouvir cantar. De depois te ver a abrir a lição sem guerra, a passar o sumário sem briga, a marcar os trabalhos que te dei para fazer, a finalmente levantar a cabeça da mesa, a trazer o material e a prepará-lo a tempo.

Foi uma surpresa para ti ontem a tua colega levar um livro para aula e apresentá-lo dizendo que era meu... e outros colegas recordarem que no 1º ciclo já os liam sem saber que um dia encontrariam numa aula a mão que os escreveu. Perguntaste (acho que foi a primeira vez que me fizeste uma pergunta) a professora é escritora? Sou sim M., sou sim. E os livros estão lá por cima na Biblioteca, podes levar todos e ler em casa.
Ele lê bem, disse a tua outra professora ali na sala comigo... e eu soube nesse minuto exactamente o que fazer.
Olha M. vamos fazer assim, a turma não leva a mal por seres só tu a receber, mas és recém-chegado e acho que devemos assinalar esse momento com uma prenda. Vou oferecer-te os dois primeiros livros e todos assinamos. Sim?

Acho que vi mais um brilho nos teus olhos. Tinha sido a canção, agora os livros.
Teço a estrada até ao teu coração passo a passo, palmo a palmo, de improviso, lendo em cada dia os sinais do teu olhar, do teu corpo. Como se planifica o amor? O que te serve a ti, não servirá a outro. As relações são feitas à medida do corpo e da alma. Receitas? Não há. Não haverá nunca nenhum portefólio que conte a nossa história. Deixo-a aqui como sinal de esperança. Porque às vezes é possível mudar sentidos em certas estradas.

Hoje levei-te os livros. Assinámos todos. Voltei a ver o brilho, quase um sorriso inteiro quando finalmente os coloquei na tua mão e disse: são teus.
Abriste-os e começaste a ler. Sim, eu sei, é uma aula de Matemática, mas não te digo nada. Precisavas de os cheirar, de os saborear um bocadinho. Eu sei. Eu faço o mesmo, sabias? Talvez para teres a certeza de que eram reais. De que agora são teus.
.

Queres ler um poema à turma? Escolhe o que quiseres. Tu a folhear e eu a perceber que tentavas não apenas escolher, como treinar em voz baixa o que se seguiria. Já está? Posso filmar para colocarmos no blogue da turma? O teu sorriso quase quase inteiro (é bonito o teu sorriso) respondeu-me sem palavras. Acabaste por ler dois. E terias ficado a ler, mas conseguiste perceber o que te disse: agora vamos lá à nossa Matemática!

Ainda expliquei que era importante lutar para avançar, para dar corpo aos sonhos. Se gostas desta turma que te tem acolhido tão bem. Se gostas dos professores e desejas continuar connosco para o ano, então, terás de dar muito mais de ti, acreditar que é possível e trabalhar...

Aos poucos, sem pressa, vou descobrindo que tipo de abre-te Sésamo me permite aceder aos teus tesouros. Porque os tens, acredita.
E havemos de os descobrir juntos.
Estás finalmente aqui, depois de um mês a fingir que querias fugir.

Sê bem-vindo!





13 comentários:

Anónimo disse...

Há lágrimas que a gente não se importa de sentir rolar. Tu sabes. Obrigado.

Anónimo disse...

Obrigada por mais uma descrição comovente das teias na sala de aula.

Existente Instante disse...

És Uma PRIMAVERA!
Se quiseres saber porquê...não te digo!
És mesmo uma PRIMAVERA! Começas a florir por dentro e ninguém te atura na pujança floral. Melhor...és capaz de ser uma "Aaranhiça" , mistura primaveril de Fada e Aranhiça.

Existente Instante disse...

"FARANHIÇA"

Anónimo disse...

Cada coração com sua chave. Tantas vezes furtiva… a requerer conquistas.
Quando achada… nascem flores no deserto, estalam foguetes de lágrimas na garganta.
Tocantes: a história e a escrita!

Teresa Martinho Marques disse...

Obrigada pelo vosso carinho... Este menino trouxe-me à lembrança os muitos meninos da escolinha onde cresci durante 20 anos. Aprendi muito sobre as dificuldades de conjugar amor e exigência nessa escolinha. Sobre a frustração do insucesso e a alegria da salvação de mais um. Até ao lavar dos cestos é vindima... é preciso, apesar de tudo, acreditar. Abraço.

Anónimo disse...

Para quem dá tanto carinho aos seus alunos, e nos abre aqui na teia os seus dias coloridos e emocionantes, com palavras que nos aquecem o coração.
Também mereces uma prendinha hoje,
vê se conheces este filme de animação da musica "Aguarela do Brasil", já é antigo mas é um mimo.
http://www.laboratoriodedesenhos.com.br/aquarela.htm

Raul Martins disse...

3za! Plagio o E.I.: És uma PRIMAVERA... Eu sei porquê... e também não te digo! Entro no jogo dele.
Fazer uma criança feliz é muito mais importante que qualquer outra coisa... o resto vem por acréscimo.

Anónimo disse...

Fico muitas vezes emocionada nesta teia...
E vou conhecendo esse e outros meninos nestas histórias cheias de carinho. Que a escola deve ser feita assim.
Filomena

Anónimo disse...

Comovente , absolutamente lúcido, lúcido porque claro e incisivo,...
E quanta história plástica por aí! ... Obrigado Cristina que me fizeste vir aqui... e aqui continuo pela maravilha da descoberta...
À Teia pede-se mais, sem obrigação, claro está.
cordialmente
JRMarto

Teresa Martinho Marques disse...

Obrigada pelas vossas palavras... é bom encontrar sempre aqui o aconchego delas... :)
Abraço

Anónimo disse...

Esta tinha-me escapado.... ainda bem que a encontrei e mais uma vez fiquei com um nó na garganta com estas palavras que a Teresa tão bem sabe conjugar... vale a pena o esforço quando se tem em troca um sorriso... há tantas crianças que são deixadas de parte e que tlv só um gesto fosse o suficiente para as trazer de volta... tenho aprendido muito aqui... parabéns pelo seu trabalho... bj
Ilda

Teresa Martinho Marques disse...

Obrigada Ilda. Beijinhos