segunda-feira, abril 30, 2007

Dádivas

Correio da Educação nº 295


Houve em tempos um currículo nacional (ainda haverá?). Competências, parece. E a ideia de conteúdos a servir o seu desenvolvimento, penso. E um balanço prometido, nunca feito, a correcção de erros, que os havia. Pois. Mas de há uns tempos para cá, enovelam-me vezes sem conta com a pergunta: deste os conteúdos todos? Todos os previstos para este período? A lei obriga. Diz que é para os pais. Escreve aí o que não deste. E as aulas dadas? Deste todas? Dei sim. Dei todas. Dei. Dei. Dei. Somos generosos, nós professores. Damos tudo. Aulas, matéria, conteúdos, fichas de avaliação (mas parece não importar que os alunos recebam). Percebo finalmente por que se diz tantas vezes que "tiramos" cursos... Tiramos a alguém. Aos professores que o dão, claro.
Lembro vagamente os especialistas que lia (tento continuar a ler), Perrenoud à cabeça, dizendo da necessidade de menos alunos por professor, de mais tempo de preparação de contextos de aprendizagem significativos para o desenvolvimento de competências, de mais tempo para o professor continuar a desenvolver as suas próprias competências, de redução das listas prescritivas de conteúdos. Parece que andamos a fazer a pergunta errada. Talvez experimentar: foram desenvolvidas no aluno as competências previstas? Os alunos aprenderam a pensar, a intervir de forma criativa e justa, e rigorosa, e cidadã, e…?
Havia também uma promessa. Reajustar programas para melhor servir essa nova visão. Onde estão?
Deste tudo? Tudo mesmo? Dei. Dei. Dei.
Pouco interessa como foi recebido o que dei. Jogo centrado no professor. A nota dirá como se colou o conteúdo ao corpo durante o tempo suficiente para provar que o dado foi provisoriamente recebido. Pouco importa se descolar depois. O perigo terá passado. Pouco importa se ficou guardada alguma coisa com serventia que o tempo não leve.
Deste tudo? Dei. Então é só registar na acta. Assunto arrumado e deixam-me ir em paz.
Houve um currículo nacional. Parece. Mas deve ter sido há muito tempo. Mal me lembro. Provavelmente foi-me apenas dado. Deve ter sido isso. Não foi preciso aprender a trabalhar com ele. Reclamo, comento aqui enquanto recordo. Qualquer dia, pronto. Acaba o prazo de validade na memória e deixo de reclamar, de ler os especialistas (onde está o tempo? A necessidade?) para dar, dar, dar sempre a mesma coisa.
Esquecer é o destino do muito que se "dá" na escola enquanto se fizer dela bocas abertas para alimentar à força pássaros sem fome. Faz-me confusão uma escola assim por me lembrar ainda de outro futuro que podia ter sido possível.
(A dádiva devia ser outra...)

3 comentários:

Alda Serras disse...

Para onde foi a gestão flexível do currículo? Parece que agora é inflexível: temos de dar tudo a todos.

P.S. Também damos as notas. Os alunos não se esforçam para as obter, são dádivas dos professores.

Herr Macintosh disse...

Para onde foi a gestão flexível do currículo?

Acho que, antes de tentarmos perceber o que quer que seja do nosso querido ME, nos devemos embrenhar na filosofia do New Speak, popularizado por George Orwell em 1984 onde havia expressões verdadeiramente geniais ("Guerra é Paz", por exemplo). Seguindo então por este caminho poderemos dizer que "A inflexibilidade é flexível" e o "Complexo é Simplex". Tudo explicado, tudo simples...

Teresa Martinho Marques disse...

:) aos dois....