terça-feira, março 07, 2006

"A insustentável leveza..."


Acordou um dia sentindo-se leve. Muito leve.
Isso poderia ser uma coisa boa, mas depressa percebeu que não era.
Tão leve estava que qualquer aragem, qualquer sopro o deslocava facilmente de um lado para o outro, contra a sua vontade. Como se a leveza se devesse à própria partida da vontade, que antes o defendia desses abusos fruto do acaso (ou da intenção).
Deu consigo tão leve e tão translúcido como se já tivesse percorrido mais de metade do caminho em direcção à transparência. Perdera a opacidade, a densidade da força, do poder de decidir não deixar passar através de si o que não fosse justo. E depois da transparência o que se poderia seguir? Chegaria talvez a invisibilidade com o seu halo de inexistência, parente da morte. Quanto mais leve, mais difícil cortar o ar em sentido inverso. O regresso tornava-se, assim, viajem quase impossível.

Foi só quando sentiu sobre si um traçado fino e doloroso, percorrendo-lhe o corpo em rabiscos sem sentido, que tomou consciência nítida do que havia acontecido: uma folha de papel fino, era uma folha de papel fino, já quase vegetal, daquele que se usa para cópia sem qualidade, sem iniciativa, sem gesto seu. Nela, folha, se estava a escrever, se estava a emendar, a corrigir, a dobrar, até a rasgar, sem perguntas, sem pedido de permissão, sem autorização expressa ou negociação de palavra.
Nunca havia pensado numa folha de papel como um objecto tão leve e impotente. Parecia tão imprescindível, tão útil, tão sempre ali presente à mão de se usar. Como se tivesse um poder que afinal, descobria agora, não tinha.

Só mesmo percebendo que se era uma delas, para olhar esse papel na vida com outros olhos. (Mais atentos?)
Em vão tentou afastar lápis e canetas, borrachas e correctores, para não ser riscado ou limpo, sem causa, razão, ou conhecimento. Em vão se agarrou ao que podia, para que o vento o não levasse.

Fizeram dele um avião de papel. Às vezes até parecia que voava, se olhasse apenas para o céu, fingindo não haver mais lugar nenhum para olhar. Mas a queda que se seguia à divagação, lembrava que a ilusão se desfazia quando se olhava no sentido certo. E que o voo era sempre resultado da iniciativa de alguém, que não era ele.

O caminho da salvação começou apenas quando tomou consciência da “insustentável leveza do seu ser” e entendeu finalmente que precisava de se alimentar melhor, cuidar mais de si, olhar mais pela sua alma, aumentando-lhe densidade e consistência (para que o pudessem ver e ouvir, o deixassem decidir em que direcção era melhor voar, que palavras deveriam ser escritas no seu corpo, que luz deveria passar através de si.)

O caminho da salvação começou no acordar que deu início a esta história.


E isso foi (será) quando?

5 comentários:

Miguel Pinto disse...

Nesta história vejo um projecto de vida tangível e paradoxal…

Teresa Martinho Marques disse...

É outróòlhar a ver...
(O que as palavras têm de bom: podemos lê-las com vários olhos... e fazê-las mais nossas no pensar que se segue à leitura...)

Anónimo disse...

"E isso foi (será)"... consciencialização, ou tomada de consciência. Certo? (Ou é outro olhar?) Ou libertação? "liberdade é a consciência da necessidade" (K. Marx)e, no caso, necessidade de o regresso não se tornar impossível.
Aiiiii, que me estou a meter em "densidade" "insustentável"!

(xiuuuu.... não digas que passei aqui, que eu estou em tempo de pausa - se é que não ando mas é em menopausa mental!!!!)

Teresa Martinho Marques disse...

Está bem...(Como se ninguém te visse...:)
Assusta-me pensar que quando todos acordarem seja um pouco tarde de mais... E, nestas coisas, só poucos chegam para pouco, embora possam arrastar mais uns quantos e engrossar a corrente. É o que espero aconteça (e a blogosfera vai fazendo o possível e o impossível para dar peso e substância às questões...).
E não, não é densidade insustentável... boa densidade sustenta-se sempre! Boa e densa pausa para ti!

Anónimo disse...

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