sábado, setembro 17, 2011

Carta aberta ao Ministro da Educação (Magalhães...? )

Caro Nuno

Não nos conhecemos pessoalmente e nem sempre partilhamos das mesmas ideias sobre as coisas. Mas hoje não falarei de nenhuma delas, porque venho apenas fazer um apelo simples e fundamentá-lo. Faço-o em meu nome pessoal, enquanto professora, e não em nome das instituições onde desenvolvo a minha atividade profissional, ou em nome de qualquer outro grupo.

O apelo?
Deixo-o já aqui e voltará a encontrá-lo por entre as razões que o justificam:
"... solicito que seja ponderada com carinho a ideia de continuar o programa Magalhães mas, desta vez, entregando os PCs às escolas..."
Sei que o tempo é pouco... mas talvez queira conhecer as razões que me levam a fazê-lo...

Sou professora de matemática por absoluta vocação. Diria até que por incontrolável amor, já que não é a minha especialidade. Formei-me em Geologia (Ramo Educacional) na FC/UL e batalhei por lá longamente nos anos 80 para me deixarem fazer o estágio no 2.º ciclo (matemática e ciências) e não no 3.º. São idades especialmente mágicas para ensinar e aprender. Também escrevo para crianças (um dos meus livros de poesia está no Plano Nacional de Leitura) e desde os 20 e poucos anos que abracei a causa das TIC na educação (pela mão de Seymour Papert e da Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico de Setúbal), sobretudo na exigente área de utilização de linguagens de programação com os mais jovens. Acredito na interligação dos saberes e em contextos que promovam essas ligações.
Ensino exatamente como vivo: com entrega e intensidade (desde 1984).

Nos anos 80, com Timex_s e ZXSpectrum_s (Minerva), já os meus alunos programavam com a linguagem LOGO (crianças desfavorecidas que viviam  vidas difíceis em zonas complicadas da cidade de Setúbal e que aprenderam a amar a matemática  numa escola feita de barracões sem quaisquer condições).
Depois de uma tese de mestrado recente (na FPCE/UL) que quis prática e virada para a sala de aula, em torno do uso da linguagem de programação Scratch (concebida no MIT, onde estive em 2008, para assistir à primeira conferência ScratchMIT e conhecer a equipa com quem colaborei à distância), avancei para nova luta que desse expressão real ao sonho que deixei escrito nas perspetivas de futuro no final dessa tese.

O MIT tem uma plataforma internacional onde todos os programadores colocam os seus projetos. Os meus primeiros alunos utilizaram-na, e à aplicação original, embora sentindo-se um pouco perdidos no universo imenso de produtos e discussões em inglês. Depois de um trabalho conjunto, a PT/SAPO conseguiu os direitos para replicar aqui a plataforma e apresentar uma aplicação gratuita com excelente tradução feita por especialistas (inicialmente trabalhei com a versão em português do Brasil que não nos satisfazia), mas isso não se traduziu, claro, em mais e melhor trabalho nas escolas, mais experiências, porque faltava o essencial: formação e partilha de experiências entre os professores.
E porque os sonhos grandes são teimosos, um dia aconteceu ter oportunidade de falar de tudo isto à Equipa de Recursos e Tecnologias Educativas (ERTE/PTE - DGIDC) e finalmente ganhar (no ano letivo passado) a confiança do ME (atual MEC) para se avançar com a criação de um portal de educadores ( http://eduscratch.dgidc.min-edu.pt/ ) e iniciar um processo gradual de sensibilização, formação e apoio a projetos, a partir do CCTIC que integro...
Pelo caminho continuei a trabalhar com os meus alunos, que no 5.º ano usam o referencial cartesiano como se estivessem no 7.º, resolvem problemas sem receio, se habituam a ser rigorosos, a explicar raciocínios e até se aventuram no uso de variáveis para, descoberta uma relação matemática e a respetiva fórmula, a incluirem num programa que permite, por exemplo, desenhar um polígono no ecrã, seja qual for o número de lados... O Scratch é muito mais do que isto, é certo... e convoca a integração de outras ferramentas tecnológicas e artesanais e de todos os saberes sem excepção. E pode ser usado com qualquer tipo de alunos, dos que têm mais dificuldades, aos sobredotados e em qualquer área curricular. Não é solução milagrosa. Só consegue atingir todo o seu potencial junto dos alunos com professores mediadores exigentes, preparados e motivados. Não se compadece com desinteresse ou desinvestimento. Obriga-nos a trabalhar a todos e não é uma solução para quem queira investir pouco. Uma carta como a que lhe escrevo hoje não conseguiria contar-lhe tudo o que já vivemos (e podemos e vamos viver) com professores e alunos que se atrevem ao desafio que o Scratch representa.
Ficará para outro dia.

Então por que razão resolvi dirigir-lhe estas palavras? No presente ano letivo o MEC confiou no trabalho que estava a ser desenvolvido pelos Centros de Competência e, embora com cortes que afetarão o seu desempenho, aceitou a continuação destes centros de apoio. Eu sou uma das professoras que faz parte dessa equipa, pela primeira vez com 100% do tempo dedicado à causa. Integro o CCTIC da ESE/IPS. Iniciámos um trabalho intenso no ano que passou, o qual começa a dar frutos em várias frentes (não apenas na matemática), e quando finalmente íamos avançar para experiâncias inovadoras com alunos do 1.º ano em algumas escolas, cujos professores estão motivados para avançar, não temos computadores em número suficiente. Verdade seja dita, numa delas (recentemente construída), nem sequer existe internet nos computadores que os alunos poderiam usar (Biblioteca).
Se a estratégia nacional prévia tivesse sido a de entregar os Magalhães às escolas e não aos alunos (como sempre defendi – com a possibilidade das crianças os poderem requisitar para trabalhar em casa em projetos da escola) não estaríamos agora nesta situação. Sim... sei... alguns pais dizem:  os Magalhães existem e a Escola nunca fez nada com eles. Mas algumas (muitas?) fizeram e querem continuar a fazer... Um exemplo simples: uma professora de uma escola em Aiana/Sesimbra desenvolveu com uma turma de 4.º ano um trabalho interessantíssimo com o Scratch (nos Magalhães) e, agora, a mesma professora vai arrancar com uma turma de pequeninos do 1.º ano, com ideias, com toda a experiência e formação... mas com um só computador para 20 alunos. E há mais escolas/professores nessa situação.
Sei que para o MEC este é um tempo de reavaliação de projetos, de contenção, de cortes. Mas a tecnologia é indispensável quando bem usada, como o são o lápis e o papel (e eu sou, apesar deste discurso, uma professora conservadora que continua a gostar muito do papel e do lápis e da prática compreensiva dos procedimentos, ou mesmo o treino simples – os meus alunos sabem-no bem), e é já parte inseparável da vida dos alunos, para o melhor e para o pior.

Temos obrigação de os ajudar a otimizar a sua utilização, apoiando-os no sentido de os tornar criadores de ideias e conteúdos com as tecnologias, de os fazer crescer cognitivamente acima do esperado para o seu nível etário ou de escolaridade, e não deixá-los ser apenas meros consumidores de música, jogos e comunicação síncrona, quantas vezes sem critério ou efeito educativo mais formal. Se a escola não os ajudar, quem poderá fazê-lo (em muitos casos, infelizmente, a família está pouco presente, ou é pouco conhecedora de alternativas ao consumo desregrado...)?

Por tudo isto, e mais coisas que não cabem aqui (mas me ofereço para esclarecer em qualquer altura), solicito que seja ponderada com carinho a ideia de continuar o programa Magalhães mas, desta vez, entregando os PCs às escolas. Não apenas por causa do Scratch, é claro (e nós socorremo-nos de muito mais ferramentas TIC e não só, quando trabalhamos em programação), mas pela importância absoluta que as tecnologias têm e terão neste século, pela necessidade de ajudar os professores a tirar o melhor partido delas combinando-as com os métodos tradicionais (a ERTE e os CCTIC que coordena têm de cumprir essa missão) e pela urgente necessidade de educar as nossas crianças e os nossos jovens para fazerem um uso mais seguro, racional e enriquecedor de todo o seu potencial.

Obrigada por ter escutado.

Teresa Martinho Marques
EB 2,3 de Azeitão
CCTIC – ESE/IPS EduScratch
http://eduscratch.dgidc.min-edu.pt/
http://projectos.ese.ips.pt/cctic/


 www.tempodeteia.blogspot.com

15 comentários:

Anónimo disse...

Permita-me felicitá-la por todo o seu percurso profissional e dedicação ao ensino. Ao ler este artigo, e como mãe de quatro menores, lamento o facto de que iniciativas como estas aqui descritas não estejam ao dispor de todas as crianças e jovens do país. Numa altura em que sinto cada vez mais a necessidade de sensibilizar as pessoas para a recolha e redistribuição de manuais escolares usados, penso que com alguma boa vontade também será possível reunir alguns Magalhães se estes projectos forem divulgados perante a comunidade escolar. As crianças crescem e com elas as suas necessidades/exigências, provavelmente existirão famílias em que os Magalhães não estejam a ser muito utilizados, e mediante uma boa causa, estejam dispostos a entregá-los para serem utilizados nestas escolas.
Espero que consiga o apoio necessário para que possa continuar a enriquecer o ensino, as crianças e os jovens com estas iniciativas.

Anónimo disse...

Parabéns!
Mas tenho dúvidas se o Sr. Nuno vai entender alguma linguagem mais técnica e abreviada no seu texto...;-)

Teresa Martinho Marques disse...

... Falei ontem sobre isso com uma das professoras, perguntando-me se os meninos que terminaram o 4.º ano poderiam... emprestar Magalhães aos novos... (um irmão vai fazê-lo, claro). Tentaremos tudo para que estes pequeninos tenham as mesmas oportunidades que outros tiveram e realmente esse caminho poderia ser uma resposta (ou parte), pelo menos para geração 2, já que muitos da geração 1 tinham problemas de funcionamento e eram mais frágeis e menos fiáveis. Os pais têm sido os meus maiores aliados nestas aventuras... Vão ficando amigos entre eles depois de percursos muito especiais de conquistas e crescimento dos seus filhotes... Com a Família do meu lado tudo se torna simples e realizável...
Quanto à compreensão... algumas destas áreas são realmente "fresquinhas"... e por isso me prontifiquei para, em qualquer altura, explicar melhor todas as razões e todo o trabalho que está aser desenvolvido. :)

Maria José Vitorino disse...

Claro que para isso também convinha não extinguir as bibliotecas e outros recursos comuns a todos nas escolas... o que dificilmente é compatível com uma visão do ensino e da escola representada dentro dos muros de uma SALA de aula (multiplicada por n bolhas impermeáveis), com professores valorizados pela (sua, só deles e de quem fez o manual) AULA... na dita sala, e com a expectativa de que o que houver para la disso não diz respeito a quem governa a educação do país, mas a cada família, cada bolsa, cada conta bancária, cada qual (uns mais quais que outros, mas isso pouco importa, não é?). Pois, a gente começa a pensar e cada vez o susto é maior

Teresa Martinho Marques disse...

Concordo Maria José... Tenho um fascínio especial por lugares mágicos e sem muros. As escolas precisam tanto deles... Não se pode cortar no que é essencial e faz a diferença dentro das escolas... A sala de aula não é tudo e tem de se abrir ao mundo... (começando por se abrir à própria escola)...

Hugo Correia disse...

Não está fácil, Teresa. E depois de ler e ouvir isto,...

http://www.cmjornal.xl.pt/detalhe/noticias/nacional/ensino/nuno-crato-nao-sabe-o-que-e-uma-escola

...pessoa com opiniões algumas vezes aqui postadas, é de ficar, pelo menos, apreensivo.

Sinto-me um bocado mal por vir aqui sem me sentir dentro do espírito Scratch. Sorry por isso. Admito que seja um projecto 'viciante' para quem tenha um conhecimento profundo dele e que seja uma ferramenta bastante útil para o desenvolvimento da aprendizagem e de novas capacidades das nossas crianças e jovens. São compreensíveis as preocupações. Nos tempos que correm é preciso ter muito cuidado com os miúdos que ficam para 'trás' nas novas tecnologias, e só a escola pode ajudar a equilibrar evidentes desigualdades de acesso e acompanhamento.


Já agora, para momento de descompressão e se interessar, tens Zahra em Lisboa no próximo dia 9 de Novembro.

Teresa Martinho Marques disse...

Nada fácil... porque não se definem as corretas prioridades... e vejo as pessoas, mesmo nesta altura, mais preocupadas com procedimentos da avaliação (que passou), do que com a preparação do novo ano letivo ou a reflexão sobre a melhoria das estratégias em sala de aula.
E não precisas de conhecer o Scratch para comentar... é apenas uma ferramenta que só pode ser excelente combinada com estratégias de mediação adequadas e com ligação a outras ferramentas...
E obrigada pela dica! :)

Hugo Correia disse...

Há dias, em outro espaço, comparei a discussão sobre a avaliação dos professores às constantes queixas do Sporting das arbitragens. Parece-me óbvio que não são matéria prioritária, pelo menos que mereça atenção durante tanto tempo, tantos anos. Falo por mim, estou cansado destas "prioridades".

jhc.portela disse...

Na minha opinião usar o Scratch é um passo fundamental para que os alunos (em breve cidadãos) possam ser mais criadores, empreendedores e não meros consumidores passivos do que as TIC, a internet, as playstations, etc oferecem… Sugiro que divulgue o seu texto em jeito de petição pública. Tenho a certeza de que muitos estarão dispostos a assinar.
Obrigado
jp

Isabel Herculano disse...

Li com muita atenção a sua comunicação. Parabéns. Sou uma daquelas professoras do 1º ciclo cujos alunos usam os Magalhães na sala de aula (apesar de bastante criticada por alguns). Tenho a sorte de todos eles serem meninos responsáveis que tratam muito bem o seu computador e alguns melhoraram bastante o seu desempenho através dele. Concordo consigo em todos os aspetos e tenho pena se os mais novinhos não tiverem a mesma ouportunidade que os colegas. Mais uma vez parabéns e obrigada.

Teresa Martinho Marques disse...

jhc, Obrigada pelas palavras (tão certas) e pela sugestão... Vou pensar no assunto, mas tenho sempre receio de dar passos maiores que a perna... e tudo isto começou por ser algo que queria expressar de forma pessoal, ainda que desejando ser escutada, claro... :)

Isabel, eu é que agradeço a existência de professores assim... Se estiver por perto... ainda a rapto para os nossos projetos e sonhos... e se estiver longe... rapto na mesma! BAsta inscrever-se no nosso portal e deixar-se seduzir... Só não podemos é visitá-los com tanta facilidade como as escolas da nossa zona :))

Luis Neves disse...

Se o Governo anterior fez nesta área das TIC nas Escolas, as coisas de uma forma muito atabalhuada e apressada, sem perceber que os Professores não estavam preparados para utilizar estes novos instrumentos nas salas de aula, sem um prévio programa de preparação dos Professores para aplicar novas metodologias.
Este Governo que o sucede é muito pior.
Ignorar a Importância que vai ter para os nossos jovens estudantes as competências diversificadas nas áreas tecnologicas, e não preparar os jovens para terem um dominio dos novos meios tecnológicos ao nosso dispor, é um atentado às novas gerações.
É da maior importância para os nossos jovens a Escola continuar a apostar nesta nova vertente do ensino , o ensino das Tecnologias da Informação e Comunicação, que serão no futuro próximo uma das suas maiores ferramentas na inserção profissional e social.
Luis

Teresa Martinho Marques disse...

Concordo... É fundamental! Aguardemos... :)

Anónimo disse...

Cara Teresa,
Concordo com as tuas propostas. Lamentavelmente, o facebook não me está a permitir colocar ligações.
Eu penso que a tua carta é perfeitamente compreensível, que o Ministro a vai entender muito bem e concordar com ela. A questão é saber se há condições financeiras e as prioridades que estão ou vão ser definidas.

Idalina Jorge

Teresa Martinho Marques disse...

Eu sei... sim.
Dependerá do contexto. É apenas uma referência ao "modo", caso decidam que há condições. Também poderia ser um programa mais restrito (como foi o dos portáteis - nem precisam de ser Magalhães) sujeito a projeto de intenções de uso. A ideia é que pelo menos se equipem as escolas que ainda não o estão... O que me entristece é passar por escolas que não têm mais de um PC por sala, ou nem isso (1ºCiclo), mas têm professores com ideias e vontade de trabalhar. Obrigada pelas tuas palavras e apoio.