Não sei se terei muito tempo para fazer
remakes... mas tentarei.
Um dos sinais de que algo não está bem é o facto de não conseguir, desde há muito, parar para pensar com calma, ou escrever sobre o que penso e sinto. A Teia está às moscas e não é por falta do que dizer, ou vontade de o fazer.
Porque a realidade transcende as (boas?) intenções de quem produz milhares de linhas sobre a educação com infinitas diretrizes, algumas em sentidos opostos, talvez seja boa ideia partilhar retratos do dia a dia. São meus, claro, não os generalizo, mas sei (e não é apenas uma perceção) que não serão muito diferentes de outros que não chegam a ver a luz. O contexto são turmas de 5.º ano (matemática e ciências). Turmas de 26 alunos (alunos com 9 e 10 anos).
Não quero emitir (muitos) juízos de valor, não pretendo tecer muitas reflexões. São as selfies que muitas vezes se apagam porque não mostram o lado mais bonito de nós. Mas são essas que desocultam os não ditos, quebram o nosso isolamento, frustração e sentimento de culpa, e que podem ajudar a perceber por que razão estamos cansados, porque tantas vezes estamos desencantados, feridos ou tristes. Há muita coisa de que me orgulho e que faço bem. Não sou uma professora na média... quem me conhece sabe. Mas só celebrarei as selfies boas, juntamente com as menos boas, para pintar a realidade com as cores que ela tem, sem filtros.
Os alunos entram, raramente todos ao mesmo tempo e a horas. Se for no primeiro tempo as desculpas são variadas, mas com frequência envolvem os pais. Cada vez mais os pais têm todas as culpas quando ouvimos os alunos. É muito raro hoje um aluno dizer que a culpa seja do que for é sua. Os atrasos, o que colocaram no lanche, o facto de faltarem materiais (
os pais não colocaram na mala, ficou em casa do pai ou da mãe, quando são casas separadas, ficou no ATL, ficou no explicador, ficou no avô, na avó, no tio, na tia...)
Passam cinco minutos, passam dez... Acalmar as energias e excitações, pedir a muitos que não fiquem sentados a olhar para o vazio sem colocar os materiais nas mesas, abrir a lição. Escutá-los todos os dias, aqui e ali, não tenho o estojo, não trouxe o caderno, não tenho manual, a ficha ficou em casa... Explicar, todos os dias, que não pode ser, que têm de ser mais responsáveis, que se isso acontece resolvem de imediato o problema arranjando uma folha, pedindo um lápis, olhando para o livro do colega... Registo as faltas de presença, são cada vez mais e variadas. Com dificuldade giro as falhas nos processos de aprendizagem quando os alunos faltam amiúde, iterpoladamente, um, outro, depois o mesmo e as unidades de trabalho interrompidas com frequência. Registo nas minhas folhas as faltas de material. Passaram quase quinze minutos, ao mesmo tempo um aluno distribui os planos de trabalho e verifico que continuam (depois de meses) a assinalar mal as tarefas concluídas, ou fora do local, ou assinalando tarefas que nunca fizeram. Quinze minutos já foram e não sei exatamente que aprendizagens essenciais da disciplina desenvolvi. Já estou em
stress. Faltam 35 minutos de aula e sinto que não fiz nada. As longas listas de aprendizagens essenciais acumuladas, porque também não acredito em "dar-lhes" coisas a correr sem o necessário tempo de compreensão, prática e a alegria de ser capaz. Às vezes querem falar comigo de tudo e mais alguma coisa, corto-lhes a palavra de coração partido. Gosto tanto de os ouvir.
Miúdos, miúdos, temos de começar, não pode ser!
Alguns alunos avançam rápido, outros não. Tento chegar a todos, não há tempo suficiente para os ajudar de facto e diferenciar eficientemente com todos. Corro de grupo em grupo procurando esclarecer, ajudar a vencer dúvidas e dificuldades e há sempre um ou outro que nada faz, se estou a ajudar colegas sem o vigiar, e brinca, faz desenhos, conversa (tenho tido a sorte de, por enquanto, não fazerem mais do que isso... mas não consigo estar de frente para todos ao mesmo tempo e não estou livre de um dia acontecer por uns segundos algo tão mau que apague todo o bom dos muitos minutos que lhes dedico). Chamo a atenção, serve por cinco minutos (se tanto), entretanto o D (autista) está um pouco perdido, mesmo depois de ter sido o primeiro a quem indiquei a tarefa adaptada, não posso estar todo o tempo com ele, mas precisava. Não posso estar todo o tempo ao lado dos que não querem trabalhar e contaminam os amigos mais influenciáveis em volta. Dois tempos por semana tenho a minha Graça a coadjuvar e, ainda assim, não conseguimos chegar a todos em tempo útil. São tantos... tão carentes, tão pouco autónomos (algo que se agrava de ano para ano), tão centrados em si, incapazes de compreender que os outros têm os mesmos direitos, que há 26 na aula, não um. Cada um a precisar de uma coisa diferente e nós a tentar tomar as melhores decisões, decidir a quem vamos, priorizar sem pensar muito, de forma instintiva, porque o tempo não chega para mais.
Universais as medidas, pois, os 54 (116?) que tudo salvam (alguém acredita?) para quem não faz a mínima ideia do que é gerir uma sala de aula, mesmo com toda a boa vontade, experiência e conhecimento que sei possuir. Para alguns foi mais ou menos meia hora de aprendizagens sólidas, para outros muito menos, para alguns pouco ou mesmo nada. Diziam no ano passado os inspetores:
o sumário deve ser um momento de evocação, feito em conjunto com a turma... etc. etc. E deve ser bem explicado lá tudo o que se fez. Aprendi isso há muitos anos, sempre o fiz, mas pela primeira vez este ano escrevo-o no início da aula a correr, a verdade é que se o fizesse da forma correta, nem meia hora de aula sobrava para as ditas aprendizagens essenciais. Para os alunos o sumário tem de ser simples, resumido, genérico, porque cada um fez o que fez e foi até onde foi, e demoram tempos infindos a copiar seja o que for (alguns nem isso, mesmo com insistências sucessivas). O meu, depois, na plataforma, é sempre mais completo e elaborado, para que da próxima vez a inspeção não se queixe de que não fazemos sumários como deve ser.
Olho para o relógio, mais uma vez não cheguei onde queria. É já fora de horas que recolho os planos individuais de trabalho (bolas, lembrei-me agora que ainda nem consegui colocar no primeiro PIT das turmas a avaliação de cada um em matemática). Sinto-me sempre ultrapassada (esmagada) pelo tempo... e eu que até sou rápida a completar as minhas tarefas. Mas esta semana que passou estive três dias inteiros ocupada em afazeres da escola e da formação... terça das 8 às 18 (aulas e reunião de equipa educativa), quarta das 8 às 21 (aulas e formação em Setúbal), quinta das 8 às 18 (aulas e reunião da EMAEI... costuma ser 19, mas foi mais rápid, uff)... ainda me falta a ata do departamento, ler o PE para a reunião de coordenadores e diretora esta semana, concluir o plano de ação, avaliar os PITs (última unidade de CN do PIT1 e MAT.. tudo do PIT1), acrescentar o que falta no PCT das turmas, ajudar a elaborar o regimento do CAA.... começar a preparar o PIT3 de matemática e ciências, ver os trabalhos dos alunos...
Deixei de ter intervalos. Saio de uma sala para outra, sempre a correr. A sensação sempre presente (que tento sacudir) de que a culpa é toda minha. Que não estou preparada para estes novos tempos, para estas novas crianças desamparadas, ou excessivamente protegidas e mimadas, que amuam, choram por tudo e por nada nas aulas, são já tão pouco educadas na forma de se nos dirigirem (aos 9/10 anos), encolhem os ombros quando falamos, bufam de enfado, fazem comentários quando lhe apetece...
A culpa que sinto, o sofrimento ético que me atinge, é saber que uns continuarão a aprender muito e bem (mesmo quando pouco tempo lhes dedico por andar quase todo o tempo de volta de outros que apresentam outros tipos de desafios mais complexos - são cada vez mais) e os outros... Alguns conseguirão fazer bom proveito do tempo extra que tento dedicar-lhes (e ainda assim pouco), outros caminharão amparados por medidas que me parece existirem por se saber bem que, nestas condições, é impossível fazer mais por eles.
Não me preocupa a questão do reprova ou não reprova, aflige-me que estas crianças, quando crescerem, estarão sempre em desvantagem. Não saberão o suficiente, não terão hábitos de disciplina e autocontrolo, não desenvolverão a autonomia e iniciativa, esperarão que todo o mundo se aconchege e adapte a eles, ao invés de fazerem um esforço para se adaptar a uma sociedade que pouco se ralará com a diferença. Não serão contratados porque não possuem as competências necessárias, serão despedidos porque não produzem o necessário. Adiaremos para um dia a perpetuação das desigualdades e lavaremos as mãos contentes porque a escola diferenciou sem diferenciar, ajudou sem ajudar, largando-os com a promessa de que o mundo seria como a escola. De 50 em 50 minutos precisam de wc, de beber, de comer e, ainda assim, de garrafas de água nas mesas. Perpetuamos a sua infância, falamos com eles como se fala com uma criança do pré escolar. Longe os tempos em que dois blocos de 90 minutos me permitiam gerir programas e desenvolver tarefas complexas, desafiando-os e avançando sem mil interrupções. Com cinco tempos de 50 minutos e crianças com estas características, faço bem menos agora. Sim, tenho de me ajustar, os tempos são outros, mas, por favor, ajustem então também os programas, o número de alunos por professor e, sobretudo, não confundam diferenciação com facilitismo (sim, eu sei que dizem que não e que a culpa é toda nossa).
Quero dar a TODOS as armas e ferramentas para sobreviverem na sociedade inflexível que terão de habitar... e isso significa trabalho de excelência com todos e cada um, com tempo de qualidade (não em quantidade) para os levar a TODOS com seriedade ao seu máximo potencial. Foi este o meu compromisso há cerca de 35 anos, mas sinto que, por mais que me esforce e tente, em cada ano recuo nas conquistas e me afasto cada vez mais do topo do Everest, essa edutopia doce que sempre foi o meu farol em todas as horas...